Nunca experimentei um serviço da Uber. Já descarreguei a aplicação para o meu smartphone, mas nunca calhou activá-la. Isso não me impede de ter ficado preocupado com a decisão do tribunal que aceitou a providência cautelar dos taxistas destinada a impedir aquela empresa de operar em Portugal (sem esquecer que ainda há uma petição no Parlamento). Por uma razão simples: desconfio sempre de decisões que protegem actividades instaladas e criam dificuldades a concorrentes inovadores. Desconfio sempre de quem protege rendas ou de quem acha que tudo tem de ser tão, tão regulado e regulamentado que acaba sempre a ser um obstáculo ao progresso e ao crescimento económico. Infelizmente Portugal não está sozinho na guerra contra a Uber. Infelizmente, se olharmos lá para cima, para a União Europeia, encontramos muita gente a pensar e actuar a mesma maneira.
Mas vamos por partes. Primeiro que tudo: o que é que a Uber traz de novo? Algo de bastante simples: uma plataforma digital que liga pessoas que precisam de transporte a pessoas (ou empresas) que podem oferecer esse transporte. Há três tipos de serviço: o Uber Black, que oferece carros topo de gama e é mais caro; o UberX, que disponibiliza carros normais e é mais barato; e o UberPop, que ainda não tinha sido introduzido em Portugal, em que basicamente se partilham boleias. Os dois primeiros funcionam com base em profissionais, por regra ligados a empresas com licença para poderem transportar passageiros. O terceiro é o mais inovador e o que tem levantado mais controvérsia, mas trata-se indiscutivelmente de uma boa ideia. Uma ideia que até pode fazer diminuir o número de carros em circulação e tem condições para ir ao encontro de algumas propostas que têm sido feitas para reduzir a emissão de gases com efeito de estufa. Mais: não é preciso de ter dinheiro no bolso para utilizar o serviço: sendo cliente Uber, o desconto é feito directamente na conta bancária.
Porque é que os taxistas, em Portugal como em quase toda a Europa, detestam a Uber? Primeiro, porque dá mais liberdade de escolha: não temos de apanhar o primeiro carro que está na praça de táxis, podemos escolher um modelo mais económico ou mais luxuoso conforme for da nossa conveniência. Depois, porque o serviço é mais barato – o Observador pode comprovar isso mesmo numa reportagem que editámos em Janeiro. Finalmente, não se tem de suportar um profissional mal-encarado, pois até é possível classificar os condutores utilizando um sistema parecido ao do TripAdvisor.
Mas tudo isto são detalhes. O essencial é que a actividade dos taxistas é altamente regulada, o número de alvarás depende da vontade dos municípios e a negócio é suficientemente lucrativo para que o simples trespasse de um alvará possa valer, nalguns casos, dezenas de milhares de euros (há alvarás à venda no OLX, é só consultar). De uma forma geral, apesar das muitas queixas que se ouvem, ter um táxi é um negócio rentável e sem grandes riscos, e uma actividade onde é interdita a concorrência de outros operadores. Os taxistas estão protegidos por lei, pois esta estabelece que só eles podem fazer “serviços de táxi” em veículos ligeiros de passageiros. Não surpreende por isso que, comon outras profissões, tentem limitar a concessão de novos alvarás, para proteger o negócio dos que já estão no mercado. Ou seja, é mais um corporativismo que protege uma actividade rentista, que mesmo numa escala bem mais pequena das que habitualmente ocupam os discursos políticos, não deixa de beneficiar disso mesmo: de uma renda assegurada.
A guerra que os taxistas fazem à Uber é por isso apenas mais uma faceta de todas as guerras que fazem a quem quer que lhes possa fazer concorrência. A guerra aos tuk-tuks e as exigências de regulamentos e mais regulamentos não é mais do que outra forma de resistência a serviços inovadores e que servem melhor os clientes – e que estes até preferem. Quando os tribunais se colocam, como agora aconteceu, do lado dos taxistas, estão a colocar-se contra os consumidores. Estão a reagir como todos os que se recusam a ver o mundo a mudar à sua frente, e se agarram a regras feitas para outros tempos. E estão a ir muito além da razoabilidade quando se permitem considerar que um serviço com as características daquele que a Uber oferece em Portugal constitui um “sério risco para o público em geral”. Não, senhores juízes, a concorrência não é um risco para os utentes, é um risco para os instalados. É isso que convinha que entendessem de uma vez por todas.
A questão da concorrência é, de resto, central não apenas ao bom funcionamento da economia de mercado, como ao progresso social e económico. A concorrência estimula a inovação, aumenta a produtividade da economia, sobretudo traz vantagens à comunidade mesmo quando cria problemas a quem tem posições dominantes no mercado. Uma das razões do nosso atraso – um atraso secular que se alimentou de maus hábitos que, como continuamos a ver, não foram ainda erradicados –, é que os poderes públicos sempre tiveram maior propensão para o proteccionismo do que para a abertura. Foi assim com os monopólios do Marquês de Pombal, com as concessões arbitrárias da Monarquia Constitucional, com a lei do condicionamento industrial de Salazar, com as nacionalizações e até com as privatizações. Em muitos domínios só não estamos pior porque as leis da concorrência da União Europeia nos estão a obrigar a mudar – um bom exemplo dessa resistência lusitana à concorrência é só agora se terem aberto às companhias low-cost os aeroportos dos Açores.
Mas até na União Europeia as coisas estão longe de correr da melhor forma. Um bom exemplo disso é a forma como as autoridades da concorrência, que têm actuado de forma firme e muito correcta em muitas frentes do mercado interno, tendem a olhar para os gigantes americanos. Neste momento o seu alvo são os colossos da Internet e das novas tecnologias, isto é, a Google, a Apple, a Facebook, a Amazon. Todos sabemos como empresas como estas mudaram as nossas vidas – e para melhor. Todos também sabemos que, no implacável mercado americano, milhares de outras empresas ficaram pelo caminho e até outros gigantes, como a Twitter e a Linkedin, conheceram a semana passada brutais quebras da sua valorização bolsista. A super-poderosa Microsoft, cujo império parecia inexpugnável há menos de uma década, já não é o que era. Nada é eterno, tudo progride.
Numa altura em que o domínio destes colossos começa a ser desafiado à escala global – das dez maiores tecnológicas mundiais, quatro já são chinesas –, há na União Europeia quem esteja obcecado pelas grandes empresas americanas (os franceses até já arranjaram um acrónimo para o que vêm como uma espécie de pessoano mostrengo dos tempos modernos: GAFA).
Joseph Schumpeter, o economista austríaco que, no início do século XX, mais cedo percebeu a importância e os mecanismos da concorrência, não notou apenas que, nesse processo, ocorria uma inevitável “destruição criativa”, pois a cada salto tecnológico havia sempre quem perdesse, mesmo que a maioria ganhasse. Ele também previu que, nas primeiras fases de um salto tecnológico, quem liderava o processo conseguia ocupar uma posição de quase monopólio, mas que esse estatuto, em sociedades abertas à concorrência e à inovação, era por regra de curta duração.
Ora uma das coisas curiosas do processo que a Comissão Europeia acaba de abrir contra a Google – muito pressionada, de resto, por grandes companhias europeias preocupadas com a sobrevivência dos seus velhos modelos de negócio – é que ele se inicia precisamente quando o poder absoluto da empresa começa a ser desafiado. É certo que 90% das buscas tradicionais na Internet ainda se fazem “googlando”, mas o rápido desenvolvimento da Internet móvel e a migração dos utilizadores dos browsers tradicionais para aplicações mais focadas nos seus interesses, está já a desafiar seriamente o domínio da Google.
Não sei, nem no caso da Uber, nem no caso da Google, o que dizem as leis no seu detalhe, mas isso é tarefa para advogados. O que me preocupa, em Portugal como na Europa, é perceber que estamos tão presos a regulamentos, leis e leisinhas, e tudo o que ciranda à sua volta, que o poder e a capacidade de inovar está hoje mais limitado pelos burocratas que dão autorizações do que pela capacidade de inventar, criar e arriscar. O que me preocupa, em última análise, é ter consciência que, nos últimos anos, nas últimas décadas, a Europa não tem conseguido criar empresas capazes de se tornarem tão poderosas como as americanas. Mas que os chineses (e até os sul-coreanos) têm conseguido fazê-lo. Estamos a ficar cada vez mais para trás.
Um país, um continente, que se preocupam mais com a protecção dos adquiridos e tem uma crescente aversão ao risco, são um país e um continente que vão continuar a encher a boca com discursos sobre a “economia do conhecimento” enquanto, no dia-a-dia, se aferrolham nos velhos hábitos e desconfiam de todas as novas formas de pensar, agir e empreender.
Não se esqueçam que, sem “destruição criativa”, só nos fica a “destruição a prazo”, por paralisia e inação. Aquilo a que também se chama, às vezes, decadência. Glória pois aos seus guardiões, sejam eles taxistas ou juízes. Saudemo-los apropriadamente:
Ave Caesar, morituri te salutant.
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