Passou apenas um ano após a invasão e anexação da Crimeia por tropas russas e ainda é muito cedo para tirar conclusões sobre as consequências dessa acção militar russa, mas já se pode dizer que elas serão muito negativas tanto para a Rússia, como para a Europa.
Um homem de negócios russos com quem falei, dizia-me: “em poucos dias, Putin destruiu relações internacionais que levaram vinte ou trinta anos a estabelecer e solidificar, colocou o seu país e o mundo numa situação que levará os historiadores a falar das épocas de antes e de depois da anexação da Crimeia”.
Como é do conhecimento público, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, começou por não reconhecer a presença de tropas especiais russas na pessoa daqueles misteriosos “homenzinhos verdinhos” que rapidamente ocuparam os centros de poder na Crimeia.
Quando se tornou impossível encobrir sinais evidentes de agressão do país vizinho, foi preciso “legitimar” rapidamente essa acção através da organização apressada de um referendo entre a população local, que terminou com uma vitória estrondosa do “sim”.
“Os próprios habitantes da Crimeia e de Sevastopol escolheram o seu destino e o futuro no seio da Rússia”, justificou Serguey Narichkin, presidente da Duma Estatal (Câmara Baixa) do Parlamento russo.
As autoridades separatistas basearam-se no “direito dos povos à autodeterminação” e, mais concretamente, no precedente do Kosovo, mas “esqueceram-se” de que a Crimeia não passou a ser um Estado independente, mas foi anexada pela Rússia.
Mas mesmo que esse referendo, que foi realizado sob ocupação militar, tenha manifestado a vontade dos habitantes da Crimeia, isso não é motivo para se invadir o território do vizinho e apoderar-se de parte dele, tanto mais que a Rússia assinara tratados que garantiam as fronteiras formadas após a queda da União Soviética em 1991.
Numa entrevista transmitida por um dos canais russos, Vladimir Putin declarou que não violou nenhuma lei quando da anexação da Crimeia, pois não enviou tropas para lá: “visto que não ultrapassámos a quantidade de soldados da nossa base na Crimeia, nós, rigorosamente falando, não violámos nada e não enviámos para lá contingentes suplementares”.
Porém, o almirante Igor Kassatonov, antigo comandante da Armada russa do Mar Negro, revelou à agência TASS informação que contradiz a afirmação do dirigente russo: “Na Crimeia, os serviços de reconhecimento da NATO deixaram escapar tudo o que se podia e não podia. Uma das razões reside no regime de silêncio profundo na rádio durante a concentração de tropas, bem como a utilização inteligente da base de Sevastopol, de meios de transporte militares que transportaram forças armadas para a Crimeia”.
É de recordar que, na Chechénia, o direito dos povos à autodeterminação já não funcionou, nem o Kremlin se preocupou em perguntar aos chechenos o que é que eles queriam, tendo esmagado de forma sangrenta o movimento separatista naquela região do Norte do Cáucaso em nome da “integridade do país”.
Face à anexação da Crimeia, a reacção do chamado Ocidente foi incomparavelmente mais dura do que em Agosto de 2008, quando as tropas russas invadiram a Geórgia e ocuparam um terço do seu território. Desta vez, as sanções foram mesmo a sério, o que parece ter sido uma surpresa inesperada para os dirigentes russos, que até hoje não conseguiram neutralizar os prejuízos da sua aplicação.
É verdade que Putin não recuou na sua política externa agressiva. Pelo contrário, ele, tal como fizera na Crimeia, enviou agentes russos para provocarem desordens no Leste da Ucrânia.
Paralelamente, continuou a apresentar várias justificações, dependendo das situações, do que o levaram a ordenar a ocupação de parte do país vizinho. Não faltou sequer a justificação “sacra”. Se antes o baptismo da Rus de Kiev, realizado pelo príncipe Vladimir em 990, era considerado o ponto de partida para a cristianização, para a formação do futuro Império Russo, Putin decidiu antecipar esse momento para 988, quando o citado príncipe conquistou a península da Crimeia e se fez baptizar aí para se poder casar com a princesa Anna, irmã dos imperadores bizantinos Vassili II e Constantino VIII.
Será que este argumento não foi decalcado da tese defendida pelos sérvios de que as raízes do seu país estão no Kosovo?
Mas, na já citada entrevista ao canal de televisão russo, Putin justificou a intervenção militar com a sua capacidade visionária: “Ao actuar de forma bastante dura na Crimeia no ano passado, a Rússia partiu da possibilidade do desenrolar dos acontecimentos aí como actualmente em Donbass, agiu preventivamente”.
Mais uma justificação bastante esfarrapada, porque ele só não fez a tal “prevenção” também no Leste da Ucrânia, porque teve de enfrentar tropas ucranianas. Tal como para a Crimeia, Putin enviou agentes seus para desestabilizar a situação, armou separatistas para alargar a sua zona de influência, mas encontrou resistência. Não obstante, conseguiu ocupar cerca de 10% do território ucraniano.
O Presidente russo conseguiu, com essas conquistas, aumentar ao máximo a popularidade de Putin entre os russos (85%), mas estes números nada têm de extraordinário se tivermos em conta as campanhas de propaganda diárias em praticamente todos os canais de rádio e de televisão russos, bem como o carácter autoritário do poder russo. Numa situação de real pluripartidarismo, ele poderia gozar do apoio da maioria da população, mas não até esse nível.
Estas campanhas incentivam também o ódio não só contra os ucranianos, os europeus, norte-americanos, mas também contra todos aqueles que no país ousam criticar a política do Presidente. O assassinato de Boris Nemtsov mostrou que a “caça aos liberastas” (palavra formada pela junção de liberal e pederasta, com que são rotulados os opositores), começou, mas também deixou claro que o lugar onde caiu Nemtso deixou de ser considerado um dos mais seguros para os dirigentes russos, incluindo Putin.
Com a violação do Direito Internacional, Putin abriu uma caixa de Pandora muito perigosa não só para Europa, mas também para o seu próprio país. Foi fácil conquistar a Crimeia, mas está a ser muito difícil conseguir elaborar um programa económico com vista a tirar a Rússia da crise, travar a degradação das condições de vida dos russos e sair do isolamento internacional em que ele meteu o país.
Por isso, a luta entre clãs nos corredores no Kremlin aumenta e a erosão do poder torna-se cada vez mais rápida.
Do outro lado, na Ucrânia, a situação também não está fácil e, sem forte apoio internacional, esse país poderá desaparecer do mapa. A avidez de Putin só ficará saciada com o derrube dos actuais Presidente e Governo de Kiev pelos próprios ucranianos, pois, desse modo, mostrará aos países da antiga URSS que não há Bruxelas ou Washington que os ajudem, desferirá um rude golpe no futuro da UE.
É muito difícil realizar reformas económicas, políticas e sociais num estado de guerra como o que se vive na Ucrânia, tanto mais que os actuais dirigentes ucranianos ainda não deram provas de estarem à altura dos desafios.
Por tudo isso, ainda é muito cedo para encerrar o dossier “Crimeia”, pois as coisas ainda estão apenas no início. Todavia, já se pode afirmar que este é o mais perigoso conflito político e militar no continente europeu depois da Segunda Guerra Mundial, capaz de mergulhar a Europa num novo recorte de fronteiras com consequências imprevisíveis.