Um ponto prévio. Não faço ideia se Manuel Maria Carrilho deveria ter sido condenado por violência doméstica pelo tribunal que o absolveu por estes dias. Do que li, não havia perícias médicas, apenas imagens de nódoas negras, pelo que não me escandalizo se uma juíza considerar que tais provas não são sólidas o suficiente para condenar.

Mas neste caso – tão saboroso como o 2017 de António Costa – o problema não é a absolvição. São – novamente – as alarvidades que os juízes entendem escrever nas sentenças para fundamentar a decisão. E, em boa verdade, quem é capaz de escrever tamanhas alucinações num documento como uma sentença de um órgão de soberania não nos deixa descansado quanto à capacidade isenta e justa de ajuizar.

A juíza Joana Ferrer – que desde o início do julgamento mostrou parcialidade, sendo pedido a sua substituição por Bárbara Guimarães e pelo MP – diz coisas fabulosas. Além da descrição de cordel do sofrimento de Carrilho, afirma taxativamente que uma mulher independente, com recursos financeiros, senhora da sua vida não pode ser vítima de violência doméstica. Para Joana Ferrer, ou Bárbara Guimarães saía de casa e apresentava queixa mal sofria o primeiro pontapé ou sopapo ou então as acusações não têm credibilidade.

Tenho lido por aí que Joana Ferrer fez uso de preconceitos. Discordo. Fez uso de uma brutal ignorância. Talvez Joana Ferrer esteja apta a julgar crimes fiscais. Talvez. De certeza que não está apta a julgar casos que envolvam violência entre pessoas.

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É que, vejam bem, a desinformada juíza não tem informação (e não cuidou de se informar) sobre os efeitos que a violência continuada tem nas vítimas, que inclui a incapacidade de reação e de escape. Joana Ferrer desconhece o que é tanto do senso comum sobre a violência doméstica como o que está estudado e relatado em inúmeros papers e livros académicos.

As vítimas sentem vergonha do que lhes aconteceu e têm dificuldade em contar e assumir. Algo que no caso de uma figura pública se reforça. Existem filhos, pelo que se entende que uma mulher demore a tomar a decisão da rutura. Existe sofrimento com a situação de agressão num casamento; talvez Joana Ferrer seja um autómato, mas as pessoas normais têm capacidade de reação diminuída quando estão em sofrimento. Até as mulheres donas da sua vida e fortes têm momentos de vulnerabilidade e fraqueza e ficam desorientadas perante uma situação de agressão. Bárbara Guimarães podia, conhecendo o marido, ter medo da lama toda que ele lhe atiraria (como atirou) na comunicação social se o casamento terminasse.

Há um quilométrico etc. de razões que podem ter levado Bárbara Guimarães a permanecer no casamento. Implica um grande esforço (ou limitação) de Joana Ferrer não conseguir vislumbrar nenhuma.

Nem todos os juízes são Joanas Ferrer, é certo. Nem Netos de Moura. O coletivo de juízes que condenou Carrilho é evidência disso. O juíz que condenou um dos homens que Neto de Moura veio depois a inocentar, também. E tal como os juízes do tribunal constitucional encomendaram livros de economia para decidir a constitucionalidade dos cortes dos rendimentos dos funcionários públicos pelo governo de Passos Coelho, também haverá juízes que terão o cuidado de ler quem estuda os comportamentos das vítimas para compreender o que se pode esperar e o que está dentro do arco da normalidade na anormalidade da violência.

Mas a absolvição de Carrilho está longe de ser filha única. Em Viseu este mês foi absolvido outro homem acusado de violência doméstica. Havia testemunhas referindo como assumira bater na mulher, comunicações em que prometia não bater mais, mas mesmo assim o juíz Carlos de Oliveira argumentou que uma mulher autónoma e moderna não se submete a uma situação de violência continuada. Mais um juiz que talvez consiga perceber fraudes contabilísticas e julgá-las mas que não está apto para casos que envolvam pessoas. Não tem pálida ideia do que é a natureza humana. O juiz foi ao ponto de averiguar sobre possíveis relações extraconjugais da vítima – porque então, quiçá, já se poderia assumir a violência doméstica e desculpá-la com a maldade intrínseca da adúltera.

Em suma: o que estas sentenças dizem é que mulheres como eu – financeiramente independentes, donas do seu nariz – não têm direito a justiça em caso de violência doméstica (e outro tipo de violência desconfia-se que também não). Ora isto é um problema político. Temos juízes a proferir atoardas insultuosas em sentenças. Impunemente – porque o Conselho Superior de Magistratura mesmo num caso como o de Neto de Moura tergiversou e sabe-se lá como irá decidir.

Uma das funções principais do estado é a dispensa da Justiça. No entanto, as mulheres, em calhando juiz da idade do bronze, não lhe têm acesso. Noronha do Nascimento pode à vontade clamar pelos perigos da independência dos juízes (se faz favor não fiquem horas a rir por ver este argumento em quem ajudou Sócrates e frequentava os eventos do ex-primeiro-ministro). É não ligar. Está na hora de Presidente da República e políticos de todos os partidos serem crescidos e garantirem a formação contínua de juízes (e falo de cientistas como Judith Herman, logo de entrada o incontornável Justice From the Victim’s Perspective e de seguida o resto da obra, não de códigos carregados de leis), adequação psicológica aos casos que julgam, bem como exigente avaliação.

Podem começar por ensinar a redigir sentenças não insultuosas. E explicar (com desenho) que os tribunais servem para cumprir a lei que os eleitos, em nome dos eleitores, legislam. Não para promover peculiares visões do mundo de uma porção da judicatura.