As eleições presidenciais deste mês não são fáceis de explicar. Depois de quatro anos de austeridade, após três meses de comoção política, com o país supostamente irritado e dividido, eis uma campanha eleitoral em ambiente de reeleição, com um concorrente muito à frente em notoriedade pública e nas sondagens. O PS não apoia ninguém, o PSD e o CDS não fazem campanha. PCP e BE limitam-se às habituais provas de vida. Vigora, em geral, uma filosofia contida da presidência. Os candidatos principais prometem “ajudar” o governo. A presidência da república parece o analgésico do regime.
A oligarquia política escolheu não confrontar-se nas presidenciais, e a sociedade civil não gerou alternativas fortes. Dir-se-á que tudo isto vem de encontro à ideia da presidência da república que emergiu desde a década de 1980. Mas os presidentes que temos tido – “suprapartidários”, “árbitros”, “moderadores” – não são os únicos presidentes que a constituição nos deixa ter. São o produto da história política, não das normas constitucionais, como explica o constitucionalista Pedro Fernandéz Sanchéz num importante estudo publicado esta semana (Os Poderes Presidenciais sobre a Formação e a Subsistência do Governo, Coimbra Editora, 2016). Os constituintes de 1976 quiseram um presidente da república de quem o governo pudesse depender, e mesmo os de 1982 respeitaram os grandes poderes presidenciais.
Muita coisa pode, por isso, acontecer. Muita coisa, aliás, já aconteceu. Um presidente da república pode promover um partido, como Eanes em 1985. Pode fazer a vida negra a um governo, como Soares entre 1993 e 1995. Pode provocar viragens políticas, como Sampaio em 2004. Mas poderia mais. Por exemplo, aproveitar um parlamento sem maioria consistentes para orquestrar acordos e alianças, tornando-se no maestro da governação. Ou promover a formação de uma maioria parlamentar que reconhecesse o presidente como seu chefe, o que lhe permitiria escolher um primeiro-ministro da sua confiança. O presidente preside, mas não governa (uma fórmula da monarquia constitucional). Mas sem governar (isto é, sem ser o primeiro-ministro), o presidente pode controlar e liderar a governação, como na França gaullista. Não é a tradição, não seria fácil — mas nada nesta constituição o impede. Tal como um regime pode ter várias constituições (exemplo: a monarquia constitucional), uma constituição pode servir a vários “regimes”, no sentido de sistemas de governo (exemplo: a constituição da república de Weimar).
A democracia portuguesa tem sido uma democracia de partidos, os mesmos desde 1975 (com a UDP a dar origem ao BE). Mesmo após anos de crise, continuam a monopolizar o parlamento e a governação, sem o incómodo de concorrentes como o Podemos ou o Ciudadanos em Espanha. O regime dos velhos partidos parece defendido na frente parlamentar. A sua maior vulnerabilidade estará talvez na frente presidencial. Os partidos geraram uma cultura de refreamento da presidência. Mas o presidente é eleito por sufrágio directo e universal. Não é impossível que um candidato independente, de fora do sistema, procure ganhar a presidência, para depois, através de eleições legislativas, tentar transformar a maioria presidencial numa maioria parlamentar. Aliás, a única novidade partidária significativa desde 1975 foi obra de um presidente: o PRD em 1985. Talvez o equivalente do Podemos ou do Ciudadanos tenha de começar, neste país, por uma candidatura presidencial.
Nunca será fácil (e se o presidente perdesse as legislativas? Resignaria?). Mas para quem pretenda mudar este regime de partidos, é a via possível. E como poderiam os velhos partidos prevenir essa eventualidade? Só imitando Salazar em 1959, e fazendo eleger o presidente no parlamento ou por uma assembleia de notáveis. A presidência da república é a verdadeira porta do regime. Está aberta há muito tempo. Um dia, alguém entrará por ela.