José Pacheco Pereira é, como se sabe, um dos críticos mais sistemáticos do Governo, bem como do PSD, e, recentemente, também do PS de António Costa, depois de o ter sido do de António José Seguro. Essas posições, porém, não me interessam aqui. Em contrapartida, interessa-me aquilo que ele diz sobre a União Europeia. Sobretudo porque, detectando problemas reais, oferece algumas sugestões que me deixam perplexo.

Leiamos, por exemplo, o seu último artigo no Público, “Os estragos na cabeça”, com data de 2 de Maio. Eis um rápido resumo, omitindo referências exclusivas à política nacional. Segundo José Pacheco Pereira, reina na discussão política uma linguagem, o “economês”, que é “uma espécie de marxismo dos imbecis”, linguagem essa que acompanha um radicalismo de direita que “demoniza a moderação” em nome de um “«realismo» autoritário, que é tudo menos «realismo»”. A «Europa» (entre aspas) transformou-se num “império”, onde, esvaziadas de soberania, “as nações passaram a secções da União Europeia”. Trata-se de um “modelo” autoritário onde se observa uma desqualificação das eleições. A «Europa» – que, presentemente, é “de direita” – passou, de resto, a servir de “argumento ad terrorum” contra quem recusa o tal “marxismo dos imbecis”. A peça central do “argumento ad terrorum” é a menção aos constrangimentos da “realidade”, que obrigaria a que as políticas tomadas tivessem inevitavelmente de ser as actuais. Mas, dada a complexidade da verdadeira realidade (sem aspas), esperam-nos “surpresas”.

Não creio ter deturpado, nestas breves linhas, o pensamento de Pacheco Pereira. E há nele muita coisa com que não custa nada concordar, nomeadamente algo que ele vem repetindo desde há anos: o facto de, sobretudo depois da introdução do euro, se ter verificado um esvaziamento da soberania dos Estados europeus, com efeitos notoriamente nocivos para os procedimentos democráticos. Mas há uma ou duas coisas que imediatamente suscitam alguma surpresa.

E não me refiro à utilização de um ou outro termo injurioso, como, por exemplo “imbecis”. De facto, num artigo anterior, Pacheco Pereira havia feito bem pior. Havia chamado “colaboracionistas” àqueles que reconhecem algum mérito aos esforços de Angela Merkel para lidar com a crise. A palavra “colaboracionismo” nasce, como se sabe, a partir do discurso do Marechal Pétain, de 30 de Outubro de 1940, apelando à colaboração dos franceses com a Alemanha nazi. Será necessário insistir no carácter duplamente injurioso da utilização de tal termo? Injurioso, em primeiro lugar, para Angela Merkel e para os alemães. E, em segundo lugar, injurioso para aqueles (entre os quais me incluo) que experimentam alguma simpatia para com os esforços de Merkel. Mas passemos por cima disso e avancemos em direcção às perplexidades.

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Em primeiro lugar, Pacheco Pereira denuncia a perda de soberania dos Estados criada pelo chamado “processo de construção europeia”. E, de caminho, a obliteração das especificidades culturais das várias nações – um dos aspectos da tal complexidade da realidade (sem aspas) atrás referida – empreendida pelos adeptos de um federalismo forte. Muito bem. Mas, ao mesmo tempo, que sugere ele para resolver, por exemplo, a lamentável situação actual da Grécia? Procedimentos que (se não é assim, como é?) só poderiam ter lugar no quadro desse mesmo federalismo forte que anula a, mesmo que muito relativa, soberania dos Estados, soberania essa que implica uma defesa dos seus interesses próprios. Ou alguma coisa profundamente subtil me escapa aqui por inteiro ou caímos numa contradição: defender a soberania por processos que a põem por completo em causa. Que o cada vez mais espantoso Juncker defenda tal atitude não é surpreendente. A questão da soberania nunca o deve ter preocupado, partindo do princípio que algo, nestas matérias, o preocupou excessivamente. Mas a Pacheco Pereira preocupou-o e preocupa-o.

Então onde ficamos? Quer uma Grécia profundamente soberana e ao mesmo tempo inteiramente dependente de uma Europa concebida segundo o modelo federalista forte? Eu também gostava de, como dizia o outro, ser ao mesmo tempo um homem normal e cheio de génio. Uma “Europa de esquerda” resolveria magicamente a tensão entre uma coisa e outra? Por que meios? Pessoalmente, não faço ideia. E suspeito que François Hollande ou Matteo Renzi, entre alguns outros, também não o fazem. De resto, se faz sentido, e eu não sei se faz, falar de uma “Europa de direita” é exactamente em virtude dos processos eleitorais democráticos que ocorreram no interior de vários Estados, isto é, de algo que escapa aos espartilhos burocráticos da União Europeia.

Mas o que me causa mais perplexidade, confesso, vem em segundo lugar. Tem a ver com a famigerada “realidade”. Também aqui não posso evitar um acordo de base. A realidade social não se afere pelos mesmos padrões da realidade física. Neste último caso, o protótipo do reconhecimento da realidade é o choque. Bater com a cabeça numa parede dá-nos um acesso imediato à existência da realidade exterior e, simultaneamente, o choque é o paradigma do que nos é mais compreensível, mais inteligível. Depois, é verdade, as coisas complicam-se, sem no entanto anularem esse facto de base. Em contrapartida, ninguém tropeça, a não ser metaforicamente, nas instituições sociais ou numa qualquer lei que a sociedade nos imponha. Aristóteles, com um génio nunca repetido depois para a formulação clara de ideias profundas, repetiu várias vezes que não se pode (é mesmo próprio de um homem inculto) exigir o mesmo tipo de rigor a um físico e a um orador (digamos: um político). O que significa exactamente que a determinação da realidade física e da realidade social não obedece nunca aos mesmos padrões.

Certo. Mas significa isso que não há constrangimentos sociais – financeiros, económicos, culturais, etc. – que determinam percursos quase obrigatórios, dentro dos quais muitas vezes as variações só podem ser mínimas? Não, não pode significar isso. A realidade social, na medida em que ela é susceptível de uma definição, é exactamente o conjunto desses percursos possíveis no interior de uma determinada configuração, como aquelas figuras que se formam num caleidoscópio. Com a diferença que, salvo revolução (e mesmo assim…), as mudanças são lentas e não se produzem, como no caleidoscópio, por uma simples agitação provocada pela mão. Agora: é impossível, no sentido forte, que as coisas se produzam fora da lógica das configurações? Não, certamente. Não há impossibilidade lógica alguma em que um índio de uma tribo perdida da Amazónia se revele ser o mais subtil intérprete das últimas sonatas para piano de Beethoven. Mas é, digamos, pouco provável, para falar delicadamente.

Essa remotíssima probabilidade é equivalente à probabilidade que a União Europeia, com ou sem euro, mude a natureza profunda da sua lógica. O que fica aquém dessas possibilidades longínquas é o que forma a realidade social. E, para citar o mais corrente pensamento de um autor que Pacheco Pereira também cita, Max Weber, a ética política, a ética da responsabilidade, consiste antes de mais na atenção aos constrangimentos dessa realidade. Da desatenção a esses constrangimentos – mais uma vez: económicos, financeiros, culturais, etc. – resultam inevitavelmente grandes e fatais trambolhões. A gente sabe o que acontece quando nos esquecemos dos limites de elasticidade da realidade social. E a propósito: se aquilo que Pacheco Pereira chama “economês” ganhou uma tal preponderância no discurso público, isso deveu-se exactamente ao choque contra os tais constrangimentos. Dito de outra maneira: foi um efeito, não uma causa. E, tirando um caso ou outro, ele é compatível com a exigência da busca de justiça que é um traço político comum às nossas sociedades.

É claro que se pode sempre falar de “alternativas”, de rupturas efectivas. Tomemos o caso da Grécia, e sem ironia nenhuma. Os gregos podem escolher a possibilidade da construção, mais ou menos caótica, de um novo tipo de sociedade, com outros valores e outras práticas, diferentes das do capitalismo. Uma sociedade muito mais pobre, sem dúvida, prezando menos a riqueza e a corte de consequências contraditórias que lhe são concomitantes do que, digamos, uma autarquia pristina e uma absoluta igualdade do corpo social. Se se quiser: dando um novo conteúdo teórico à palavra “socialismo”. Resta, no entanto, uma dúvida: estarão mesmo eles (ou os portugueses, por exemplo) dispostos a isso, a uma transformação antropológica a tão vasta escala? Nada parece mais improvável. Por mim, mais depressa apostaria no exímio pianista oriundo dos bravos, e muito simpáticos, membros da tribo Mashco Piro. Também essa inverosimilhança define, pela negativa, a realidade social.

Mas, enfim, Pacheco Pereira sabe isto melhor do que eu. O que eu não percebo é porque é que ele diz o que diz. Há certamente muito a fazer, pouco a pouco, para tornar a União Europeia – que não é, sem dúvida, um “império” – uma estrutura mais flexível que devolva mais autonomia aos Estados. Mas não se vislumbra no que Pacheco Pereira diz nada que nos ajude a pensar o que fazer nessa direcção. Ele que me perdoe, mas o que parece o mais das vezes é que é ele que “demoniza a moderação”.