Depois das eleições legislativas, em que o índice de abstenção ultrapassou os 90%, hoje, 18 de junho de 2066, tomou posse o novo governo constitucional. Muito embora os partidos mais votados tenham sido o progressista e o conservador, cada um com cerca de 20% dos votos, ambos foram incapazes de formar governo, ao contrário da coligação Bloque Animal, constituída pelo Bloque de Extrema Esquerda – antigamente denominado Bloco de Esquerda mas que, para evitar um masculino claramente machista e sexista, alterou o seu nome para Bloque – e o partido dos animais, que conseguiu um resultado histórico, graças ao seu slogan: Não sejas besta e vota no partido dos animais!
As duas forças políticas que, separadamente, perderam as eleições por poucochinho, mas que juntas são agora a nova maioria parlamentar, repartiram entre si as diversas pastas ministeriais, sendo de salientar a criação do ministério dos Assuntos Animais que, segundo comentário do porta-voz do governo, é mesmo bestial. Mas há mais novidades, como a Secretaria de Estado dos Vegetais, a Direcção Geral dos Moluscos, para além do SNAPSC, ou seja, o Serviço Nacional de Apoio Psico-Social às Cagarras, com sede nas Ilhas Desertas.
A nova ministra da Saúde, do Bloque, já adiantou que vai alterar de imediato o nome do Hospital de Santa Maria, não só porque a denominação religiosa é escandalosamente ofensiva para os não cristãos e contrária à laicidade do Estado, mas também porque a dita Santa Maria estaria implicada no caso Espírito Santo, um dos maiores escândalos financeiros de princípios do século. Com efeito, segundo informações confirmadas pelo DIAP e pela PJ, o filho de Santa Maria não o era do seu marido, São José – também ele dono de um hospital público na capital, cujo nome deverá ser igualmente alterado, muito em breve – mas do Espírito Santo (não se sabendo contudo se do bom ou do mau). Aliás, seria precisamente por saber que seu pai era, em sentido próprio, o DDT, ou seja, o “dono disto tudo”, que o filho de Maria teria tido veleidades messiânicas, que não se chegaram a concretizar por ter morrido ainda novo, deixando viúva uma tal Maria Madalena e filhos que vão aparecendo paulatinamente, em geral à razão de um ou dois por ano, sobretudo por altura da festa do solstício do inverno, que substituiu o Natal, entretanto interdito, embora se permitam os presépios, desde que tenham apenas o burro e a vaca.
A propósito ainda da saúde, vai ser em breve inaugurado, em Coimbra, o novo Matadouro Municipal, nas instalações dos antigos hospitais universitários. Como foi devidamente explicado, no novo matadouro já não se cometerá a barbaridade de executar animais não humanos, limitando-se portanto, por imperativos éticos, a eutanasiar pessoas.
O novo parlamento acaba de constituir a centésima quarta comissão parlamentar sobre o caso Camarate, a terceira mais antiga da Assembleia da República, logo depois da que investiga a extinção dos dinossauros e da que está encarregue do livro branco do terramoto de 1755. Recorde-se que a anterior comissão, sobre o referido desastre aéreo, tinha concluído que o acidente se tinha ficado a dever a um pássaro, que obstruiu um dos motores, provocando a queda da aeronave. Como o partido dos animais não aceitou a injusta e ofensiva incriminação de um animal não humano nessa tragédia, votou contra o correspondente relatório e exigiu a constituição de uma nova comissão, em que também estarão presentes, pela primeira vez, animais, para evitar que a sua dignidade possa ser, de novo, posta em causa.
De Bruxelas, chega a notícia mais esperada nestes últimos meses: foi finalmente homologado, por todos os países membros, excepto o Reino Unido, o acordo que estabelece as medidas padrão do corta-unhas europeu! Como se esperava, a Grã-Bretanha, que defendia outro sistema de medição, com unidades tradicionais como o casco e a unha, anunciou que, depois deste gravíssimo revés, vai referendar a sua permanência na União. Regularizado, por fim, o corta-unhas europeu, é provável que, proximamente, os países membros se ocupem da questão menor dos refugiados.
Uma boa notícia para os defensores da vida: proibiu-se a interrupção da gravidez de qualquer fêmea cuja espécie esteja em vias de extinção, o que, obviamente, não é o caso dos humanos. Aliás, foi denunciado às autoridades competentes um animal racional de sexo feminino, que quis fazer passar a sua cria por um lince ibérico, para assim poder gozar dos benefícios previstos na lei para esta espécie protegida.
Às escolas católicas – que só podem existir se, num raio não inferior a 500 Kms, não houver qualquer escola estatal – proibiu-se, por ser manifestamente animalofóbico, o mitológico relato bíblico que atribui a uma inocente serpente não só a encarnação do mal diabólico, como também a tentação que provocou o pecado original.
A Assembleia da República também reconheceu aos animais não racionais todos os direitos humanos. O respectivo acasalamento já foi equiparado, em termos legais, ao casamento civil, com direito de adopção plena de animais humanos. Com efeito, uma recente sentença do Tribunal Constitucional declarou que, se os animais racionais podem ter um animal irracional, o princípio constitucional da igualdade obriga a que também os animais irracionais possam adoptar um animal racional. Segundo o Correio da Tarde, dois caracóis, que convivem há já vários anos com um octogenário animal racional, poderiam ser os primeiros a ter um humano como animal de estimação.