Jane Austen bem diz, pela voz de Lizzy Bennett, algures no Orgulho e Preconceito, que ‘uma boa memória é imperdoável’. De facto: a natureza humana é tão propensa ao disparate que qualquer relação só sobrevive se lhe for aplicada uma boa dose de esquecimento seletivo sobre as aleivosias alheias e próprias.

Como sempre, a boa literatura capta e descreve os fenómenos humanos antes de a ciência os dissecar. Para garantir que não existia memória da feroz aversão por Mr Darcy, mais tarde substituída por paixão, Lizzy assegura que ‘this is the last time that i shall ever remember it myself’. Boa estratégia, que a ciência veio aplaudir: apesar da psicologia e da neurobiologia da memória estarem longe de conhecer tudo da formação e armazenamento das memórias, sabe-se que quanto menos as memórias forem acedidas, mais facilmente são esquecidas.

É estratégia também usada pela esquerda nacional: fingir que nunca colocou Chavez e Hollande (no meio de outros fogos-fátuos ainda mais ridículos, como Yannis Varoufakis) no altar das grandes esperanças e estandartes do socialismo mundial. Não se fala, ninguém se lembra, deixa de existir.

Mas recordemos. Hollande venceu em 2012. Logo socialistas nacionais se deixarem conquistar e entregaram-se a loas próprias de adolescentes apaixonados. Lembro-me de ter lido como finalmente Portugal (sim, Portugal) teria alguém que defendesse os seus interesses junto da União Europeia. Por oposição, claro, aos diabólicos PSD e CDS, que se dedicavam em todas as horas de expediente a implorar aos senhores de Bruxelas que impusessem impostos ainda mais draconianos e sugassem de todas as formas possíveis o sangue e a linfa dos portugueses.

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O líder do PS de então, António José Seguro, embevecido descreveu-o: ‘uma lufada de ar fresco e um novo ciclo de esperança para a Europa’. Mário Soares mostrou enlevo mais intenso. Asseverava que (preparem-se para tanto esplendor) ‘François Hollande sonha com um outro New Deal, à semelhança de Franklin Roosevelt, e no encontro que teve com Barack Obama tornaram-se mais do que aliados, amigos.’ Hollande era uma personalidade tão potente que, vejam bem, foi capaz de amolecer um bocadinho o coração negro e demoníaco de Passos Coelho, tudo num breve encontro em Chicago. Defendeu-o dos ataques da malvada direita, que queria enlamear tão glorioso presidente fazendo uso da sua vida privada, algo que gente de bem não faz, avisou. (Diz o mesmo Soares dos inícios da democracia que atacou politicamente Sá Carneiro pela sua relação com Snu Abecassis.) E pelo PS foi tudo assim.

Ora Hollande viveu para deixar o PS com um resultado de 6% nas eleições presidenciais. É certo que Macron era o candidato preferido de Hollande. E que os socialistas franceses escolheram o esquerdista chalado Benoit Hamon para a candidatura presidencial. Em todo o caso, é impossível não nos regalarmos com a argúcia dos socialistas nacionais na hora de escolherem as suas mascotes e porta-esperança do socialismo.

Recordemos ainda o affair venezuelano. Neste caso, em boa verdade, a tentativa de assobiar para o lado vem só de PS e BE. O PCP, mais genuíno, continua a defender o regime chavista da Venezuela. Mesmo depois das manifestações massivas, das mortes dos manifestantes, das cargas policiais sobre quem protesta, dos inúmeros atropelos à liberdade e à democracia, da supressão de opositores, da fome e da pobreza a alastrar apesar das reservas petrolíferas, das filas para os supermercados onde escasseiam os bens básicos, da nacionalização das padarias. João Ferreira – o candidato à Câmara de Lisboa pelo PCP – fez a 6 de abril uma intervenção no Parlamento Europeu defendendo os ‘factos reais’ da maravilhosa situação na Venezuela. Que, de resto, só vive sobressaltos graças à ‘ingerência’ dos vilões imperialistas. (E verbalizam tudo isto sem a ajuda de estupefacientes.)

Mas se PS e BE fingem que nunca se cruzaram com o regime chavista, avive-se a memória. O reincidente Soares, criticando Maduro, elogiou Chavez. Depois, note-se, de Chavez abrir caminho para o estrondoso Maduro, que Soares criticava, e patrocinar referendos manhosos para manutenção do crescente poder presidencial, ou encerrar compulsivamente, em várias levas, rádios e televisões privadas pouco obedientes. Bom, calar órgãos de comunicação social hostis é o sonho de qualquer socialista português. Talvez também por isto Sócrates decretou Chavez um ‘amigo de Portugal’. Em 2016 – repito, em 2016, quando o regime chavista já tinha descambado na catástrofe ditatorial e produtora de miséria – a câmara socialista da Amadora teve a falta de vergonha de inaugurar uma Praça Hugo Chavez. Diz-me quem celebras, dir-te-ei quem és.

E o Bloco? É amigo de coração do regime chavista desde sempre. Lembro-me de ver Louçã (aqui em mais um elogio) na televisão declarando que a vitória de Chavez, em referendo, significava a vitória do socialismo e da população mais pobre. A queda dos preços do petróleo é que minou o sucesso venezuelano – há sempre uma desculpa, não é? Também defendem, quase sem tirar nem por, as políticas económicas que cozinharam a calamidade venezuelana.

Espero que tenham apreciado esta viagem pela memória das miseráveis amizades chavistas dos partidos da geringonça. Como se vê, PCP, PS e BE estão sempre certos a avaliar líderes e ideologias dos regimes. É o mesmo acerto e discernimento que devemos esperar noutras bandas da sua atuação.

Mas não queria finalizar com escárnio. Permitam-me terminar com uma nota otimista sobre a eleição de Macron. Como já referi, a linha socialista chalada de Hamon – a mesma de Costa, Pedro Nuno Santos, Galamba, Porfírio Silva e três quartos do atual PS – estampou-se gloriosamente. E, com ela, a narrativa de que o eleitorado só castiga por estes dias o socialismo moderado. Mais importante: Macron mostrou que o anti-establishment (grande vencedor da noite) não tem de estar sequestrado por extremismos nem por subprodutos corrosivos como Corbyn, Farage, Trump, Le Pen, o rabo de cavalo do senhor do Podemos, Catarina Martins. É uma boa lição.