Joaquim Sousa Ribeiro sorri abertamente para Passos Coelho, sem qualquer sinal de tensão. Está vento, o primeiro-ministro compõe a melena, ao mesmo tempo que conversa com gestos largos, descontraído. Nenhum aparenta ter qualquer pressa, nem o presidente do Tribunal Constitucional (TC), nem o primeiro-ministro. A cena parece improvável, mas aconteceu esta quarta-feira perto das 19h, ao ar livre. Foram mais de cinco minutos, sob o olhar público e até televisionado. Aconteceu na cerimónia de trasladação dos restos mortais da escritora Sophia de Mello Breyner, na primeira fila, frente a Panteão Nacional, em Lisboa.

Os dois homens que protagonizam a crise mais aguda alguma vez vivida entre poder Executivo e Tribunal Constitucional aproveitaram o momento para uma conversa de circunstância sob o olhar atento de Guilherme d’ Oliveira Martins, o ex-ministro de Guterres que agora preside ao Tribunal de Contas. São os mesmos que há um ano se enfrentaram duramente na reunião do Conselho de Estado e que esta quinta-feira voltam a sentar-se pela primeira vez à volta dessa mesa em Belém. O Presidente da República nunca mais tinha convocado uma reunião do Conselho de Estado, até agora. Já passou um ano.

A última reunião do TC acabou com Sousa Ribeiro a apontar o dedo a Passos Coelho. Não gostou das críticas que o primeiro-ministro havia feito ao TC por causa do chumbo ao Orçamento do Estado de 2013. Foi preparado para o embate e rebateu ponto por ponto os reparos de Passos e de outros membros da maioria.

Segundo relatos do encontro que decorreu à porta fechada, Sousa Ribeiro disse ao líder do Executivo que a Constituição está acima do memorando com a troika e que os juízes são independentes face aos poderes políticos. “Vou dizer uma coisa muito simples e muito elementar, mas simultaneamente muito forte e que ninguém se pode esquecer, são as leis, e inclusivamente a lei do Orçamento, que têm de conformar à Constituição e não é a Constituição que tem de se conformar a qualquer lei”, afirmou, segundo o Diário de Notícias.

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A polémica prolongou-se ainda com uma discussão sobre o teor do comunicado que o Presidente preparou, porque conselheiros como Jorge Sampaio e Manuel Alegre consideraram que este não podia deixar de mencionar os temas que estiveram em cima da mesa. Cavaco chegou a ponderar não fazer o tradicional comunicado no fim da reunião. Marcelo Rebelo de Sousa acabou por sugerir a versão negociada que acabou por ver a luz do dia.

Por sinal, as críticas então feitas pelo Governo aos juízes do TC eram mais suaves do que aquilo que tem sido hoje prática corrente. O Executivo acusa mesmo os juízes de quererem que se aumente impostos e de não terem “bússola” orientadora na sua jurisprudência.

Mas nesta reunião, o chefe de Governo parece querer evitar um segundo capítulo daquela reunião. Segundo fonte próxima de Passos Coelho, o primeiro-ministro “não deverá responder” a Sousa Ribeiro se este abrir novamente a discussão sobre os chumbos. A intenção parece ser a de deixar esfriar os ânimos.

Para além dos chumbos que já se foram acumulando desde a última reunião do Conselho de Estado a 20 de maio (convergência das pensões, cortes nos salários, requalificação dos funcionários públicos), o TC tem uma série de novas medidas do Governo em análise neste momento: a Contribuição Especial de Solidariedade, o aumento de descontos para a ADSE, as novas regras do Rendimento Social de Inserção. E sabe-se já que tanto a nova tabela salarial da função pública, como a nova Contribuição de Sustentabilidade também vão ser examinadas pelos juízes do Palácio Ratton. É, pois, uma lista extensa. E que ameaça dificultar o cumprimento do Orçamento do Estado deste ano e a elaboração do documento do próximo ano bem como a estabilidade dentro da coligação PSD/CDS.

Nestas reuniões, o Presidente da República pede a cada um dos 19 conselheiros que faça uma intervenção por ordem de lugares à mesa ou então dá a palavra a quem a vai pedindo. Tem usado estas duas formas.

A agenda marcada pelo Presidente é para discutir os fundos estruturais, mas Cavaco vai querer ouvir de forma aberta os seus conselheiros tendo em conta a instabilidade que os próximos meses pode trazer à vida política – vinda quer da maioria, quer do PS.

Esta manhã, o jornal Público anota que o Presidente deixará vincada a preocupação com a elaboração dos dois próximos orçamentos, os primeiros após a saída da troika. O objetivo de consenso já será quase impossível no primeiro, mas ganhará novos contornos no seguinte, que é o primeiro da nova legislatura. Uma discussão que mete um difícil calendário eleitoral pelo meio, com legislativas e presidenciais previstas para outubro e janeiro, respetivamente.

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À volta da comprida mesa do Conselho de Estado, a geometria política é variável e as agendas também. Na defesa do rumo que traçou para a sua governação, Passos Coelho tem ao seu lado pessoas como Luís Filipe Menezes, Assunção Esteves, Alberto João Jardim, Vítor Bento ou Marques Mendes, que apoiam o rumo do atual Governo. Marcelo Rebelo de Sousa ou Bagão Félix estão cada vez mais afastados. Marcelo corre em pista própria – provavelmente com a ambição de vir a ocupar o primeiro lugar em Belém. Bagão tem-se tornado um feroz crítico, nomeadamente, sobre os cortes das pensões.

O secretário-geral do PS, António José Seguro, por seu lado, olha para os socialistas sentados ao seu lado e não tem um único apoio claro à sua liderança. Numa altura de crise interna, em que António Costa ameaça retirar-lhe poder, Seguro sabe que Mário Soares e Vasco Cordeiro estão com o autarca de Lisboa. Manuel Alegre e Jorge Sampaio não deram apoio expresso a Costa, mas vieram a público pedir a Seguro que aceite um congresso extraordinário e eleições diretas já para o cargo de secretário-geral. Nunca um líder do PS esteve numa posição tão frágil numa reunião destas em Belém.

Seguro, aliás, já fez saber o que tenciona levar a discussão: a renegociação das condições de pagamento da dívida. Para esse intuito, conseguirá ter apoio dos históricos socialistas que olham para ele de lado e duvidam da sua capacidade de liderança. Nesta matéria, pode até ter apoio de Bagão Félix, o ex-ministro das Finanças indicado pelo CDS que assinou o Manifesto dos 74 que pede mesmo a reestruturação da dívida – algo mais ambicioso que Seguro nem sequer pede.

“Há necessidade do país estabelecer um consenso nacional em torno da necessidade de renegociação das condições de pagamento” da dívida portuguesa como forma de “aliviar os sacrifícios dos portugueses”, disse este fim de semana, em Barroselas.

A resposta (esperada) de Passos Coelho a esta proposta foi dada quarta-feira na Assembleia com clareza. “De cada vez que se fala de renegociar a dívida dá-se uma machadada nos instrumentos de estabilização económica na Europa», disse o chefe do Executivo no debate do Estado da Nação.

O consenso nacional de Cavaco, contudo, é outro. O Presidente da República está preocupado com o pós-troika. Tem insistido na necessidade de consensos, mas na agenda da reunião está apenas a questão do acordo de parceria sobre os fundos estruturais – algo em que até há consenso entre Governo e PS. Os dois lados têm estado a trabalhar discretamente desde o ano passado nesta matéria. Nem seria preciso agora um empurrão de Cavaco.

Seguro deixou claro, em entrevista dada à Radio Renascença na semana passada, que outros acordos da oposição com o Governo só fazem sentido “no início de uma legislatura”, nunca no fim.

“Seria um milagre”, afirmou no seu comentário na TVI Marcelo Rebelo de Sousa, que é também conselheiro de Estado.  “Não vai servir de nada. Não há condições para mais do que isso”, refere ao Observador um outro conselheiro de Estado sobre o sucesso do apelo ao consenso do Presidente. “É apenas para cumprir calendário”.