Há máscaras de gás, capacetes, binóculos, canetas com um século de existência, crucifixos encontrados nos destroços em França, postais (muitos), cartas e fotografias (outras tantas). Há até uma descalçadeira, muito útil para os soldados tirarem as pesadas botas enlameadas depois dos combates nas trincheiras. Tudo objetos que desde sexta-feira estão a dar entrada na Assembleia da República, um a um, depois de Assunção Esteve ter literalmente aberto as portas à iniciativa do Instituto de História Contemporânea Dias de Memória.

A porta que dá acesso ao átrio principal da Assembleia da República foi aberta na sexta-feira à tarde pela mão da própria Presidente do Parlamento, num gesto simbólico de início de um novo capítulo. Do lado de lá estavam cerca de 90 alunos de duas escolas de Lisboa, do 10º ao 12º ano, à espera para entrar. Mas não eram meros visitantes da iniciativa que decorre durante este fim de semana na Assembleia. “Estamos a fazer com que as coisas permaneçam na história. Estamos a fazer a própria história”, explicou ao Observador Maria Beatriz, uma aluna do 12º ano do Liceu Camões, que foi enquanto espetadora mas também como colaboradora do projeto. Antes, Assunção Esteves tinha agradecido a presença dos jovens que, tendo nascido na década de 90, nenhuma recordação têm da Grande Guerra – sem eles “a iniciativa ficava incompleta”.

“Sabemos que a guerra foi importante, sim, mas que nos é tão próxima, tão decisiva, e que, além do mais, tem tão diretamente a ver com a nossa família, é muito pedagógico não só para os mais novos, como para todos nós”, resumiu ao Observador Maria Fernanda Rollo.

Maria Fernanda Rollo, do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, é a coordenadora do projeto no plano nacional, já que os ‘Dias da Memória’ estão inseridos num projeto mais amplo da biblioteca digital Europeana (o Europeana 1914-1918). Um projeto que há dois anos está a ser organizado em vários países da Europa para recolher o mesmo tipo de materiais associados à Guerra mas a uma escala europeia. O objetivo, diz a coordenadora, é mostrar que “a memória que temos é aquilo que nos permite contar a nossa história coletiva”.

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Objetivo que parece estar a ser bem acolhido entre os mais novos, que circulavam entusiasmados pela sala, com as suas fitas amarelas ao pescoço a identificá-los como colaboradores da iniciativa. “É muito bom para nós porque temos outro ponto de vista para lá dos manuais; aprendemos coisas que se calhar não são tão relevantes para o que sai nos testes mas que nos fazem perceber como realmente se viveram os acontecimentos”, diz um nada tímido Rogério Maurício, de 15 anos. Maria Beatriz, colega da mesma escola, já aprendeu até uma coisa nova com as muitas cartas de guerra que leu. “É engraçado reparar que, apesar do sofrimento e das condições adversas, eles [os soldados] nunca revelavam o sofrimento que estavam a passar”, diz, sublinhando que “só assim percebemos realmente a dimensão que os acontecimentos tiveram”.

E por isso o apelo é claro, e dirigido a todos os cidadãos: primeiro, ir ao baú, vasculhar nos confins da memória e recolher todos os objetos que de alguma forma retratem as histórias de quem foi e de quem ficou na Grande Guerra. Depois, levá-los à Assembleia da República até domingo, para os mostrar à equipa que estará responsável por digitalizar e catalogar todos os materiais. O objetivo é construir o maior arquivo de recordações do confronto que levou 100 mil soldados portugueses à linha da frente de batalha há precisamente 100 anos e, no fim, deixar tudo disponível online para consulta, tanto no portal www.portugal1914.org como no www.europeana1914-1918.eu. Desta forma as memórias da Guerra ficarão disponíveis para consulta “para sempre”, como, aliás, tudo na internet.

“Se eu sei que não vou estar cá daqui a outros 100 anos para contar a história, pelo menos sei que este edifício e este arquivo estarão”, diz João Tomé, um dos alunos do Liceu Camões que contribuiu com material para o acervo. No caso, uma boina e uns binóculos que foram usados pelo seu bisavô, antigo combatente, e que mostra orgulhosamente a todos os que queiram ver.

Casa cheia para “humanizar a guerra”

A colaboração dos mais novos é, de resto, vista com bons olhos por todos. São os que têm menos memória (nenhuma, na verdade) e por isso são os que mais precisam de vasculhar. Para o diretor do Liceu Camões, trata-se de um “contributo para a paz” e de uma “excelente aprendizagem para serem cidadãos mais completos”. “Os nossos alunos foram revisitar os seus antepassados, os seus bisavós, e assim conseguiram descobrir nomes e histórias de vida e de amor que de outra forma nunca saberiam”, diz João Jaime Pires, para quem os ‘Dias da Memória’ estão a contribuir para “humanizar a guerra”.

A recolha começou na sexta-feira e teve casa cheia. Além dos cerca de 90 alunos das escolas Josefa de Óbidos e Liceu Camões, que entre sábado e domingo se vão organizar por turnos para trabalharem como voluntários na catalogação dos materiais, era ver chegar homens e mulheres, de várias idades, cada um com o seu saco de memórias. Faziam fila para passarem, primeiro, pela mesa da “entrevista”, onde mostravam os objetos e contavam a sua história e, depois, pela mesa onde os materiais eram digitalizados e identificados.

No saco de Ana Maria Morão iam fotografias, cartas, postais ilustrados – “mas escritos” – que os seus avós, paterno e materno, trocaram com a família quando estiveram em campo de guerra. “Só não trouxe mais objetos porque não quis vir carregada, mas trouxe fotografias de alguns dos que tenho em casa, como a máscara de gás do meu avô”, disse ao Observador a professora universitária.

Então e por que quis participar no projeto? A resposta é pronta e sem rodeios: “Porque tenho netos. E quero que eles conheçam a história, não só da família, como do país”.

Maria Guilhermina nunca chegou a ter filhos, mas foi também, em parte, por isso que não quis deixar passar esta oportunidade de partilha. “Como não tenho filhos isto não terá interesse para mais ninguém”, diz, afirmando que quis contribuir com as suas memórias por ser “a melhor forma de homenagear” o seu tio-avô que combateu em França. Além das cartas e fotografias, no saco de Maria Guilhermina vai também um crucifixo “que sempre se ouviu dizer lá em casa que o meu tio tinha trazido de França, dos destroços de uma casa abandonada”. “Guardei-o sempre comigo e agora acho que estas coisas têm interesse de ser partilhadas, até por uma questão de prestar homenagem”, diz.

Então o que tenho de fazer para contribuir? É simples, e a coordenadora Maria Fernando Rollo explica:

 “É só as pessoas aparecem [na Assembleia da República entre sábado e domingo das 10h às 18h], mostrarem os seus objetos à nossa equipa e aí e nós temos oportunidade de as conhecer, de as entrevistar, de ouvir as memórias que têm do seu familiar, e quais são as histórias que estão por detrás dos materiais que nos trazem. Depois todos esses objetos são digitalizados por nós, e todo o material passa a ficar disponível online“.

Et Voilà.

Mas não termina aqui, apressa-se a dizer Fernanda Rollo. O projeto Portugal1914 já dura há dois anos e tem-se vindo a preparar para “este grande momento de três dias na Assembleia da República”, mas continuará fora de portas. “Isto aqui, oh…isto foi só o princípio”, diz orgulhosa a historiadora.