A definição não engana, em nada: “Atos cometidos com a intenção de destruir, em parte ou na totalidade, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.” É assim, com estas palavras, que as Nações Unidas explicam, desde 1948, ano em que foi assinada a convenção que criou a organização, o que é um genocídio. Além do Holocausto, a história guarda na gaveta vários exemplos, como os ocorridos nos Balcãs ou no Ruanda, onde milhões de pessoas morreram por alguém não querer que elas existissem. Mas há um que, mesmo com execuções, perseguições e a morte de quase 1,5 milhões de pessoas, não é aceite pelo povo que o cometeu. Nem mesmo após o Papa se pronunciar sobre ele usando a palavra chave.
Aconteceu no domingo, quando Francisco dava a missa na Basílica de São Pedro, no Vaticano. Nas mãos tinha um papel, que lhe dava frases para os olhos lerem e a boca dizer, enquanto alguém lhe apontava um microfone. O Papa leu, falou e acabou por surpreender. “No século passado, a nossa família humana passou por três tragédias sem precedentes. A primeira, que é amplamente reconhecida como ‘o primeiro genocídio do século XX’, atingiu o povo arménio”, disse. Era a primeira vez que a Igreja Católica utilizava o termo genocídio para se referir ao que aconteceu, há quase 100 anos, no Império Otomano.
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O peso do simbolismo, por isso, aumentou — porque as palavras do Papa Francisco surgiram a menos de duas semanas de, a 24 de abril, em Iereven, capital da Arménia, se assinalar o centésimo aniversário do genocídio. E a Turquia, como sempre, não gostou, e fez questão de o frisar e demonstrar. Horas depois de as palavras saírem da boca do Sumo Pontífice, o ministro turco dos Negócios Estrangeiros, Mevlut Cavusoglu, abriu o Twitter para lá escrever que as declarações do Papa estavam “desligadas dos factos históricos e de uma base legal”, considerando-as “simplesmente inaceitáveis”.
Os tais factos históricos contam que, entre 1915 e 1918, primeiro (em plena Primeira Guerra Mundial), e, depois, de 1920 e 1922, à volta de 1,5 milhões de arménios morreram em territórios do Império Otomano — que então se estendia pelas áreas onde hoje estão a Turquia, a Síria, o Iraque, o Líbano, Israel, a Jordânia e partes da Arábia Saudita. De acordo com o Instituto Nacional da Arménia, sediado em Washington, nos EUA, o genocídio começou a 25 de abril de 1915, quando o governo otomano deteve mais de 200 arménios em Constantinopla (atual Istambul), tendo-os enviado para a prisão, onde grande parte foi executada.
Religious offices are not places through which hatred and animosity are fueled by unfounded allegations.
— Mevlüt Çavuşoğlu (@MevlutCavusoglu) April 12, 2015
Por altura da Grande Guerra (1914-1918), em que o Império Otomano era aliado da Alemanha, estima-se que viviam no território cerca de dois milhões de arménios. Cerca de um milhão foi deportado em 1915. Depois, quando o império estendeu a ofensiva para o leste, rumo ao que hoje é o Azerbaijão, na tentativa de conquistar Baku, as tropas otomanas colidiram com a Rússia numa região onde existiam, pelo menos, 1,8 milhões de arménios. Foi sobretudo aí que ocorreram as execuções em massa e de onde milhares começaram a marchar pelo deserto sírio, onde morreram à fome ou devido a desidratação, rumo a campos de trabalho. Em 1922, no fim do Império Otomano, nem 390 mil arménios existiam no território.
A Turquia, contudo, ainda hoje recusa, por completo, a definição de genocídio para descrever o que aconteceu aos arménios. Em parte, por considerar que milhares de arménios morreram nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, além de defender que nunca existiu um plano delineado para exterminar o povo arménio. Nos últimos anos do império, o governo otomano, liderado, desde 1908, pelo Comité da União e Progresso, ou os ‘Jovens Turcos’, como se apelidavam, cobrou impostos especiais aos Cristãos e ao povo arménio, antes de, inclusive, aprovar leis que autorizavam a deportação de alguém que fosse considerado como uma ameaça. O império chegou também a retirar as armas aos arménios que pertenciam ao exército do território.
No domingo, porém, o ministro dos Negócios Estrangeiros turco encarou as palavras do Papa Francisco — que também este fim de semana recebeu Karekin II, líder da Igreja Apostólica da Arménia, no Vaticano — “com grande tristeza e desilusão”, citado pelo The Guardian, classificando-as até como “discriminatórias” por apenas se ter referido ao sofrimento do povo cristão, esquecendo, por exemplo, os muçulmanos — religião predominante na Turquia. A mais recente visita do Papa ao país ocorreu em novembro e, esta segunda-feira, o governo de Ancara chamou o embaixador turco no Vaticano. “Como foi uma ação que não aprovamos, como primeira reação, [o embaixador] é convocado para consulta”, explicou à CNN o antigo detentor do cargo, Kenan Gursoy.
O efeito Kardashian
Está próximo o 100.º aniversário do genocídio dos arménios e, portanto, talvez à efeméride se deva o facto de nunca antes o tema ter sido tão amplamente noticiado — o New York times, por exemplo, só começou a utilização de definição de ‘genocídio’ a partir de 2004. Mas há ajudas a vir de outros lados e Kim Kardashian é uma delas.
A celebridade norte-americana, que há anos protagoniza um reality show e namora, atualmente, com o rapper Kanye West, está de visita em Iereven. A família Kardashian tem raízes arménias e o país está ao rubro com a sua presença. Na sexta-feira, Kim visitou o memorial que homenageia as vítimas do genocídio e imagens do momento inundaram as redes sociais. Depois, no domingo, encontrou-se com o primeiro-ministro arménio, Hovik Abrahamyan, e pediu desculpa por não falar a língua.
No domingo foi a vez de Kanye West decidir dar um concerto gratuito na capital arménia, onde chegou a atuar dentro de uma fonte, e o governo do país agradece. “A Kim Kardashian veio para prestar tributo às vítimas e tem milhões de seguidores. Se ela escreve ou diz alguma coisa é uma grande publicidade para nós. A maioria das pessoas nem sequer saber onde fica a Arménia”, admitiu Hranush Hakobyan, ministro para a diáspora.
Turquia recusa reconhecer genocídio de arménios
A Turquia rejeitou a pressão internacional para reconhecer o assassínio em massa de arménios na Primeira Guerra Mundial como um genocídio, no 100.º aniversário da tragédia.
Uma fonte do Governo turco disse à agência de notícias francesa, AFP, que Ancara tinha ficado “verdadeiramente surpreendida” com os comentários de Francisco, que foram emitidos durante uma missa na basílica de São Pedro, no Vaticano, para assinalar as mortes dos arménios às mãos dos otomanos. “Mete-te na tua vida, Papa”, era a manchete do diário pró-governamental Star, ao passo que o diário Aydinlik titulou “A Nova Cruzada”
A Turquia tem uma perspetiva diametralmente oposta da tragédia, sustentando que centenas de milhares tanto de turcos quanto arménios perderam a vida quando as forças otomanas combatiam o império russo pelo controlo da Anatólia oriental, durante a Primeira Guerra Mundial.
Para muitos turcos, é inconcebível considerar que as forças otomanas foram responsáveis pelo pior de todos os crimes, numa altura em que eram comandados por figuras às quais se atribui a colocação das primeiras pedras para a criação da Turquia moderna, em 1923.
“Não há qualquer época, na história da Turquia, de que esta se possa envergonhar”, disse o ministro dos Assuntos Europeus turco, Volkan Bozkir, classificando as afirmações do papa como “vazias”.