“O projeto está inquinado desde o início. Entrámos para um Partido Democrático e Republicano (PDR) que é tudo menos democrático. João Pica, vice presidente do Conselho Nacional do PDR, tece duras críticas ao fundador e presidente do partido, Marinho e Pinto, e apresentou a demissão esta sexta-feira. Outros 30 filiados e mais dois conselheiros também se preparam para abandonar um projeto que, em pouco mais de dois anos de história, acumula casos. “Espero que saiam”, responde Marinho e Pinto, que acusa “um grupo de Lisboa” de ter entrado para o partido com objetivos “meramente pessoais, de beneficio pessoal, com abuso de funções”.
“O PDR está completamente desgovernado por um líder autocrático”, acusa ao Observador João Pica. Segundo o cabeça de lista nas eleições legislativas pelo Círculo da Europa, deveria haver, em breve, nova Assembleia Geral. Mas Marinho e Pinto não quer a sua realização. E só ele a pode marcar. “Espanta-me como é que o Tribunal Constitucional aprovou estes estatutos.”
As críticas sucedem-se: o programa político das eleições também deveria ter sido votado pelas concelhias nacionais “e nem lhes foi enviado”; “as listas são feitas como ele quer fazer, os cabeças de lista a mesma coisa”; “os membros da comissão política foram escolhidos de forma unilateral sem passar cavaco a ninguém e, nos Conselhos Nacionais, Marinho e Pinto pressiona-os para votar num sentido“. Em suma: no PDR “não há votações, o partido é uma associação onde há uma pessoa que gere tudo”.
Ao contrário do que tinha sido discutido inicialmente, continua João Pica, os estatutos do partido são presidencialistas, o que faz com que Marinho e Pinto concentre nele todas as decisões. Um dos problemas é que o ex Bastonário da Ordem dos Advogados acumula o cargo com o de deputado do Parlamento Europeu. “Como podemos ter um partido presidencialista se o presidente só está aqui uma vez por semana?“, questiona. João Pica lembra que Marinho e Pinto disse no passado que ia abandonar o Parlamento Europeu, e acredita que não o faz por uma questão de conveniência económica. “Nós até quisemos que ele fosse candidato por Lisboa, que é o que faz sentido, e ele nunca o quis ser, preferiu sempre Coimbra, porque lá era praticamente impossível ser eleito, foi dos piores resultados que tivemos…”
Outro dos membros do Conselho Nacional que vai apresentar a demissão na segunda-feira justifica ao Observador, de forma muito resumida, a desilusão com o projeto. “Não quero ter nada a ver com essa gente.” E pede para não ser identificado. Elisabete Costa, também do Conselho Nacional e cuja demissão do cargo será igualmente enviada a Marinho e Pinto na próxima segunda-feira, considera-se enganada. “Tinha muitas expectativas na imagem do dr. Marinho e Pinto, achava que ia ser diferente, talvez por ele não ser um político. Mas é mais do mesmo, lidera à base do quero, posso e mando.” Segundo a conselheira suplente, quem contraria o presidente é excluído ou sancionado. “Ele considera que sendo o presidente não tem de dar satisfações. Tem!”
O vice presidente assume que a sua demissão peca por tardia e explica que, em agosto de 2016, conversou com Marinho e Pinto sobre as queixas que agora faz. “O que aconteceu a seguir foi ele colocar-me um processo disciplinar interno“, lamenta. Vários membros chamaram a atenção também para a associação aos irmãos Bourbon, “porque havia situações menos claras, nomeadamente ligações a cobranças coercivas”. Pedro Bourbon, vice-presidente e número dois do PDR, é atualmente suspeito de ser o mentor do rapto e homicídio de um empresário de Braga. “Essa situação afetou muito o partido e continuamos a ter pessoas ligadas a Pedro Bourbon”, sublinha João Pica.
“Deve haver uma auditoria forte e séria do Tribunal Constitucional”
Os problemas no partido tornaram-se públicos em maio de 2015, na primeira Assembleia Geral. Houve filiados de última hora, confusão, gritos e as votações acabaram por ser suspensas por Marinho e Pinto, eleito presidente durante a manhã. O problema foi quando, à tarde, Alexandre Almeida, antigo militante do MPT (Partido da Terra), que elegeu Marinho Pinto como deputado ao Parlamento Europeu, decidiu apresentar uma lista concorrente ao conselho nacional do partido. “Eu percebo que um fundador de um partido se sinta de uma certa forma atraiçoado porque projetou algo e de repente vê outra pessoa a candidatar-se ao órgão máximo. Mas o que aconteceu foi tudo menos democrático, passámos uma imagem péssima cá para fora”, recorda João Pica, que diz que, em reuniões privadas, Marinho e Pinto já tinha dito que “não ia tolerar uma tentativa de assalto ao partido”.
Nas legislativas de 2015, o PDR não conseguiu eleger nenhum deputado à Assembleia da República. “E, honestamente, ainda bem”, assume o ex-candidato pelo círculo da Europa. Por ter tido mais de 50 mil votos, o PDR passou a receber uma subvenção anual do Estado, no valor de cerca de 190 mil euros. As finanças do partido são tuteladas pelo presidente. “Nós não temos noção nenhuma de como está a ser feita a gestão do valor e sou a favor que se faça uma auditoria dentro do partido.”
João Pica diz que essa ideia foi falada internamente, mas que não houve “margem de manobra sequer para continuar”. “Deve haver uma auditoria [da Entidade das Contas] do Tribunal Constutucional forte e séria”, frisa. Elisabete Costa acredita que “o que se queria era a subvenção“, e também denuncia a falta de apresentação de contas. “Houve quem apresentasse faturas para tirar dinheiro do partido. Ele [o presidente] tem de explicar isso, por exemplo faturas para pagar despesas em Braga para o Pedro Bourbon“, remata João Pica.
“Há pessoas que utilizaram o partido só para beneficio pessoal”, responde Marinho e Pinto
O PDR foi fundado em 2014 por seis pessoas: António Marinho e Pinto, Eurico Figueiredo, Fernando Pacheco, Fernando Condesso, João Marrana e Vieira da Cunha. Todos deixaram o partido, à exceção do ex-bastonário. Em agosto de 2015, Ivone Lemos, ex-número dois de Eurico Figueiredo e outros quatro apoiantes do antigo militante socialista, decidiram pedir a demissão. Na hora de bater com porta, a consultora imobiliária não poupou nas críticas ao partido e acusou o PDR de se ter transformado num “restaurante” com um “mau chef” – e um staff não muito melhor -, que “não tardará a fechar portas”.
Ao Observador, Marinho e Pinto desvaloriza as saídas, que reduz a “um grupo de Lisboa” que entrou para o partido “só para beneficio pessoal, com abuso de funções e desvio de património”. O presidente do PDR diz não ter feito queixa às autoridades porque ainda está a contabilizar os rombos, mas salvaguarda que João Pica não se inclui no lote de interesseiros. “Este partido foi fundado para se tentar convencer o eleitorado de um projeto refundacional da República, não foi para arranjar empregos. Havia pessoas que queriam levar dinheiro por ir à sede do partido! Comigo não há isso.”
O que não invalida que o presidente não tenha queixas a apontar a João Pica. O processo disciplinar foi-lhe aplicado no ano passado, “porque quis destituir o presidente do Conselho Nacional com menos de um terço dos votos”. Mais: durante a campanha para as legislativas, João Pica era cabeça de lista pelo círculo da Europa, “mas apareceram fotografias dele como se fosse candidato a Lisboa, à revelia do partido”, acusa o antigo Bastonário. “Fez um boicote sistemático da candidatura a Lisboa, foi uma sabotagem.”
“É totalmente mentira”, riposta João Pica, e afirma ter como provar, já que está tudo nas atas: em 2016 houve uma moção de censura ao presidente do Conselho Nacional, Sérgio Passos. “Essa moção ganhou com maioria e o presidente foi destituído. Ao ser destituído, é preciso fazer eleição de nova mesa e eu fui votado para ser presidente do Conselho Nacional. E o dr. Marinho e Pinto fez-me um processo disciplinar a acusar-me de tentativa de assalto, tal como tinha feito naquela primeira Assembleia Geral de 2015 quando alguém apresentou uma lista.” Sérgio Passos ainda é presidente, “porque o Marinho e Pinto fez uma impugnação ao Conselho Nacional”. Algo inconstitucional, já que um órgão soberano não pode fazer impugnação a outro órgão soberano.
Sobre as contas do partido, Marinho e Pinto afirma que as enviou para o Tribunal Constitucional e reitera que “a subvenção estatal não é para gastar em almoços e viagens”. É, sim, para preparar as eleições autárquicas de 2017. “É isso que eles não suportam. Apresentei as contas no final da campanha [2015], agora vamos fechar as contas de 2016 e vamos apresentar o saldo”, garante. “Mentira”, contrapõe João Pica, que conta que o presidente dizia nos encontros que “quem quisesse ver as contas que fosse ver em privado”. E que nem os comissários políticos as conhecem. “O partido recebe cerca de 17 mil euros por mês do dinheiro dos contribuintes, é uma vergonha.”
Dissidentes consideram criar um novo partido
As eleições para um novo presidente estão marcadas para 2019. À semelhança de Ivone Lemos, João Pica também acredita que o projeto não vai durar muito mais tempo. “Há ano e meio tínhamos concelhias em praticamente todos os concelhos. Tínhamos perto de 3.000 filiados, neste momento se tivermos 600 é muito“, denuncia. O acesso à base de dados dos filiados “está restrito ao presidente e à secretária, que é funcionária do presidente”, mas o ex-vice presidente afirma ter tido acesso ao documento. “Até o acesso a essas informações ele fechou”, acrescenta Elisabete Costa
Mais: o Conselho Nacional do PDR, que é a Assembleia representativa do partido, tem de ter 25 membros efetivos mais 25 suplentes. No entanto, com o número de desistências, “já só existem 28 no total.” Sem João Pica, passam a 27. Basta haver mais três demissões para que o órgão perda o quórum efetivo. “Depois, há conselheiros que, por emitirem as sua opiniões, não são convocados. Só por isto se vê que não é um partido a sério”, acusa Elisabete Costa.
Mais uma vez, Marinho e Pinto nega. Garante que são “dois mil e tal” os filiados e “dezenas” de concelhias, embora não saiba de cor o número. “Os filiados não se mandam por e-mail, que era o que eles queriam!” E ainda que diga que tanto a Comissão Política como o Conselho Nacional tenham direito a ver a lista, justifica não a ter mostrado porque nunca ninguém a pediu, acrescentando que, apesar de haver saídas, também há pessoas que se estão a inscrever no partido.
Questionado sobre se os dissidentes consideram criar um novo partido político, João Pica assume que existem conversações nesse sentido. “Há uma forte possibilidade de surgir um projeto novo”, com uma linha de orientação semelhante à do PDR. “As ideias eram muito interessantes, o problema aqui foi que tudo o que elaborámos foi desvirtuado.”