É à mesa que tudo acontece. Negócios, discussões, festejos, conversas: todos estes momentos da vida têm o dom de acontecer à volta de comida e bebida e no caso de João Wengorovius, o português que assina We, Chefs (edição Documenta), a história não foi diferente. Determinado em perceber como um cozinheiro se transforma (e se mantém) num “chef”, este antigo publicitário passou quatro anos da sua vida a percorrer o mundo inteiro, de Nova Iorque a Xangai, a falar com os mais distintos nomes de cozinha contemporânea. Numa mesa para dois, durante um almoço, ouviu cada um deles e assim nasceu o livro que agora esta à venda.

Para conhecer melhor o autor e a obra que tem sido destacada por nomes como Joan Roca, Daniel Humm, Alex Atala ou Massimo Bottura, o Observador deu a Wengorovius um pouco do seu próprio remédio e passou um almoço inteiro a perceber como tudo isto surgiu e quais foram as conclusões que agora encadernou. Foi desta forma que numa mesa à entrada do restaurante Prado, em Lisboa, partilharam-se pratos e histórias.

O publicitário-cozinheiro

Como tantas vezes acontece, a ligação de João com a comida vem de longe. “Sempre gostei de cozinhar e faço-o há muitos anos. Não sei quando é que isso se começou a manifestar, mas sei que comecei a cozinhar mais quando fui viver para Londres pela primeira vez.” A vida profissional levou-o, “há uns vinte e tal anos”, para o Reino Unido e, como morava sozinho, teve mais tempo para se dedicar às receitas.

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João Wengorovius, o português que assina “We, Chefs” divide-se entre os mundos da gastronomia e da publicidade. ©Divulgação

Mais tarde, já de regresso a Portugal, o trabalho enquanto líder da agência publicitária BBDO entorpeceu a disponibilidade para cozinhar mas tudo isso mudou quando decidiu “tirar um ano sabático”. Ciente de que “precisava de aprender mais”, decide inscrever-se na escola de cozinha do chef Alain Ducasse (“não fui para a dos turistas mas sim para outra que fica nos arredores de Paris, é o sítio onde os chefs dele vão treinar”). “Por mais que pratiques, tires uns cursos de verão, nada disto se compara ao entrar numa cozinha profissional — e eu sempre tive essa vontade, a de tirar um curso mais à séria.”

Bastaram uns meses a desenhar receitas em cadernos de bolso (“eles falavam muito rápido, assim conseguia decorar melhor as coisas”) para João perceber que queria ir mais a fundo e assim nasceu a ideia deste livro, obra que não é um livro de receitas, muito pelo contrário. “Logo durante as aulas comecei a fazer analogias, ligações entre a cozinha e o mundo criativo”, começa por dizer. Estas “pontes” ajudaram-no a perceber como é que um cozinheiro descobre a sua voz, o seu traço de autor, e mantém-no com o passar dos tempos.

Enquanto dividíamos uma tosta de toucinho fumado e maçã florina, João foi explicando melhor aquilo que decidiu perceber: “Quis saber o que distingue os chefs mas também aquilo que têm em comum. Quis perceber o percurso que têm de percorrer até encontrarem uma voz autoral e o que fazem depois disso. Fascina-me a forma como conseguem garantir a consistência evitando a repetição.”

Como tudo funcionava

O resultado final é aquilo que se pode encontrar nas 590 páginas onde tanto o texto como as fotos foram de sua autoria. Funcionando como uma espécie de espinha dorsal do raciocínio que se propõe a apresentar existem 33 palavras — Open, Passion, Taste, Memory, Texture, Growing, Repetition, Mentor, Authorship, Terroir, Now, Unfamiliar, Context, Tools, Interface, Less, Subtext, Play, Waste?, Paradox, Reinvention, Naming, Storytelling, Consistency, Family, Mise en Place, Resilience, Energy, Feedback, Fresh, Overlap, Serendipity, You — que resumem todas as etapas que devem ser percorridas para alcançar a tal realidade que o fascinou: a criatividade consistente no tão desgastante e cada vez mais competitivo mundo da cozinha de autor.

“Hoje em dia consegues ver os pratos todos, quase, nas redes sociais, nos facebooks, etc. Já sabes como as coisas são, mas mesmo assim, quando lá vais, queres ser surpreendido. Já viste o nível de exigência? Isto põe muita pressão…”

Resta saber como tudo isto funcionou na prática.

“Fui conhecendo chefs e comecei a desafiá-los a fazer estes almoços”, conta João. Posto assim, parece simples, mas o autor é rápido a esclarecer que as coisas foram bem mais complicadas do que possa parecer. “Convencer uma pessoa que não te conhece e que é requisitada pelo mundo inteiro é muito difícil” e, como se não bastasse, há toda a parte logística associada ao viajar para outro país (hotéis e deslocações) e conseguir reservar mesa. A juntar a tudo isto é importante ter em conta que João não abdicou do sua vida profissional enquanto realizava este trabalho — “Ainda por cima isto é algo que fazia em paralelo com a minha vida profissional, porque depois de sair da BBDO criei uma consultora com Pedro Bidarra”.

O que acontecia era o seguinte: Wengorovius tentava estabelecer uma linha de contacto com os chefs que havia seleccionado, “de todas as formas que conseguisse”.

“Quis encontrar representatividade de continentes diferentes, estilos diferentes, idades diferentes, fases da vida diferentes. E claro, também tem a ver com os contactos que consegues fazer.”

A seguir explicava aquilo que pretendia: “Apresentava-lhes a minha ideia começando por dizer que era um outsider do meio, que vinha de fora mas que olhava para esta área da cozinha com muito interesse. Via nele um paralelo com a minha profissão, as industrias criativas.” No geral, João procurava discutir com os cozinheiros aquilo que se pode aprender sem ser a parte da cozinha em si. Queria perceber “tanto o processo criativo (alguns têm-no mais arrumado e outros são mais intuitivos)” como a consistência do seu trabalho e a forma como ela nasce e se mantém.

Depois de aceite, o passo seguinte seria um almoço informal com o chef em questão, no seu restaurante (se bem que algumas vezes tivesse sido noutro sítio). O autor explica que a insistência em ser uma conversa à mesa nascia do raciocínio que abre este texto: “A ideia de partilhar uma refeição não só é simbólica como torna tudo mais fluído e descontraído”, cenário ideal, já que não levava consigo nenhum guião ou pergunta pre-formatada. Em vez disso, tinha uma espécie de kit que consistia num pequeno caderno, uma caneta, um gravador, a máquina fotográfica e o desenho de um esqueleto de peixe:

“O peixe e as espinhas ajudavam-me a manter algum rumo na conversa. A cada espinha associava uma palavra-chave relacionada com um tema que queria abordar e isso ajudava-me a seguir o fio à meada”, explica.

Esse mesmo desenho de um esqueleto de peixe é o que abre o livro — “como eu começava as conversas por aí, faz sentido que começasse o livro da mesma forma.”

A capa e contra-capa de “We, Chefs”, é forrada a tecido. O livro custa 90€. ©Divulgação

Ao Observador explica que no livro não entraram todos os cozinheiros com quem falou, “era quase impossível caberem todos”, mas mesmo assim orgulha-se de ter conseguido chegar a tantos quanto chegou. Ao início pode ter sido difícil abordá-los, mas depois, quando se tornou conhecido como “o tipo que anda a fazer o tal livro”, as coisas foram ficando mais fáceis.

As histórias coleccionadas

Há umas linhas falava-se de que, algumas vezes, Wengorovius só conseguiu almoçar com alguns chefs noutro sítio que não os seus restaurantes. Durante o almoço que partilhou com o Observador, recorda um caso em específico em que isso aconteceu:

“Quando fui ao [restaurante] Astrid & Gastón, no Peru, ia para conhecer o Gastón Acurio, mas acabei só por falar com o Diego Muñoz. O Acurcio sugeriu que tivesse no restaurante primeiro, a falar com o Diego, e depois ia falar com ele numa cevicheria mais popular. Foi uma experiência extraordinária, tudo! O ambiente, a quantidade de ceviche que comi, tudo!”

Como dá para imaginar, a esta história somaram-se muitas outras, como a vez em que foi ao L’Arpège, do famoso chef francês Alain Passard, para uma refeição normal. Já tinha sondado o cozinheiro para combinar um dos seus almoços mas não foi possível fazê-lo na data que havia sugerido, mesmo assim, num dia em que estava por Paris, decidiu ir lá comer à mesma. “Sentei-me na minha mesa e vejo-o ao fundo, atrás da janela da porta que dava acesso à cozinha, a dizer-me adeus. Mais tarde passou pela minha mesa — tinha-se ido despedir de uns clientes — e diz-me ‘já ai vou ter contigo’. Fiquei um bocado aflito, não tinha trazido nada comigo, acho que nem sequer tinha bateria no telemóvel para gravar a conversa, mas pronto. Ele lá acabou por se sentar e ficamos ali horas, a conversar”.

Houve um episódio semelhante quando foi falar com o mítico Joan Roca, do El Celler de Can Roca. Na altura da visita, o restaurante liderava a lista do World’s 50 Best Restaurants e João havia combinado que chegaria cedo para “ir tirando umas fotos do espaço”. Quando chegou, Joan recebeu-o e disse para ficar à vontade, ele ia levar a equipa ao restaurante dos país, uma espécie de “tasca” tradicional, onde iriam comer qualquer coisa antes do serviço do almoço. O chef deixava-os lá e regressava para a conversa. Tudo aconteceu tal e qual havia sido combinado: ou melhor ainda, até.

“Cheguei muito cedo, tipo às 11h30 […] Ele depois regressou, sentámo-nos a conversar e só sai de lá às 20h e tal. Tinha medo que só me pudesse dar alguns minutos de atenção, mas acabou por correr melhor do que esperava.”

No geral, Wengorovius diz que não teve nenhuma experiência menos boa. Acumulou “horas e horas” de gravações ( meio a brincar, meio a sério até diz que desgravar tudo foi a maior complicação de todo o projeto), milhares de fotos, desenhos e algumas surpresas. Ao Observador destaca duas em específico: a primeira foi em Lima, também no Peru, quando visitou o restaurante Central, do chef Virgilio Martínez (“Toda a experiência foi uma coisa de outro mundo. Tudo aquilo é muito bem feito e surpreende sempre. Ele serve-nos coisas de que nunca ouvimos falar, que nem sequer têm tradução para inglês!”); a outra passou-se em Xangai, quando visitou o restaurante Ultraviolent, do chef Paul Pairet:

“O Paul escreveu-me a dizer que aquilo é uma experiência multi-sensorial, com vídeo, cheiros, etc. Tu ficas a pensar que vai ser um circo de efeitos especiais, vais sempre um bocadinho céptico, mas a verdade é que aquilo está espetacularmente bem feito. Ele está a servir a comida, não a si próprio.”

Todas as fotografias do livro são da autoria de Wengorovius. ©Divulgação

Mas e no meio de tudo isto, ficou com algum restaurante ou chef favorito? João é diplomático ao alegar que é “impossível dizer que tive um favorito” e prefere destacar que “a riqueza disto tudo é o perceber, genuinamente, que toda a gente tem uma coisa interessante a dizer, alguma coisa de único”.

Conclusões e a sobremesa

Os clientes do Prado iam e vinham, a tarde já começava a instalar-se e pelo tampo da mesa já tinham passado vários pratos ( um tártaro de novilho envolvido em couve grelhada, palitos de porco preto, sarrajão com caldo de porco, …). A conversa, essa continuava animada, mas aos poucos seguia rumo às conclusões finais — e à sobremesa, o delicioso gelado de cogumelos.

“Há uns [restaurantes] que já voltei a visitar, mais que uma vez, até. Já voltei à Osteria Francescana, ao El Celler de Can Roca, ao Septime… É giro ver as forma como as coisas vão mudando, acompanhar o desenvolvimento. Usar a comida como tema de inspiração para outras áreas é algo que gostava de continuar a fazer”, explica o autor. Na verdade, esta última frase introduz uma outra característica deste livro: a sua transversalidade.

Muita gente pode não ter interesse na área do fine dining ou da alta-cozinha mas a verdade, segundo Wengorovius, é que “a ideia de querer fazer algo único” é algo que não se restringe a uma área específica, é universal.

“Eu fiz o livro a pensar que há pessoas do meio, os chamados foodies e não só, que têm curiosidade. Mas também pensei muito no médico, no arquitecto, no advogado que também é apaixonado por isto, pela vontade de encontrar uma voz autoral. A cozinha é um exemplo interessante, mas o mesmo acontece em todas as áreas.”

João vai mais longe ao falar desta vertente do seu livro dando como exemplo a dificuldade sentida em algo tão simples como a escolha da secção de livraria ou biblioteca onde ele se enquadraria. “Houve sempre a confusão de saber em que prateleira da loja é que este livro ficava melhor. Vais parar a uma coisa de gastronomia por default, mas a coisa não se restringe a isso. Se tiveres na gestão podes encontrar aqui algo sobre isso, o mesmo se aplica à liderança, por exemplo. Há muitas gavetas que o mundo decidiu fazer, mas quanto tentas fazer um livro que não encaixa numa área só, tudo fica mais confuso.” Apesar disso, o autor só vê positivos nesta realidade:

“Vejo isto como uma virtude, até. Acho que uma parte deles [os chefs que já viram a obra finalizada] me tem dito isso, que o livro os fez pensar mais porque não é uma obra de receitas ou de entrevistas, só. As entrevistas, neste livro, funcionaram muito como trabalho de campo, não se esgotam ali.”

A busca pela autenticidade e originalidade é algo muito Humano e Wengorovius tentou perceber e mostrar como isso se faz. É sua opinião pessoal a ideia de que “o mundo fica mais rico se todos tentarmos ser autores naquilo que fazemos” e isso só acontece quando “deixas algo de ti naquilo que fazes, investes muito para criar algo único de que te orgulhas”. O caminho até atingir isso e a forma como se consegue perpetuar essa tal identidade é aquilo que aparece nas páginas de We, Chefs. Apesar dessa ideia ter ficado bem clara, as tais 33 palavras destacadas careciam de uma explicação mais clara.

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“Olha o Terroir, por exemplo: Escolhi essa como uma das palavras porque remete-nos a uma reflexão sobre tudo aquilo que tens à tua volta e como consegues ter uma reação original a isso. O que é que isto traz de único a um projecto global que é o mundo?” clama. Outro exemplo que dá é o da palavra Family, um conjunto de letras que se pretende associar à ideia de que o trabalho de alguém é tão bom quanto mais qualificadas ou dedicadas forem as pessoas que o ajudam a realizar — “O que faz grande diferença no dia-a-dia, no depois de “chegares lá”, é a equipa (a de sala, de cozinha, fornecedores, …). O chef pode ser o grande catalizador de um projecto, é ele que dá a visão, mas não é sozinho que a consegue construir ou manter.” E esta é uma “verdade absoluta” tanto na cozinha como na maior parte das coisas da vida.

Dois exemplos bastaram, portanto, para explicar que da mesma forma que João escrevia palavras-chave nas espinhas do seu peixe como forma de orientar as suas entrevista, estas 33 que escolheu servem o mesmo propósito condutor. O mesmo método que se usou para “conhecer mais” é reutilizado “para explicar”.

Já com os cafés a servir de ponto final, a grande pergunta: Acha que este trabalho mudou alguma coisa na maneira de ser dos chefs consultados?

“Seria bastante ambicioso afirmar que sim. Acho que se acontecer alguma coisa, será daqui a uns tempos, as coisas precisam de espaço para se desenvolverem. Mas não tenho veleidades de dizer que fiz uma obra que mudou o mundo.”

O livro pode (ainda) não ter mudado nada na forma de trabalhar ou pensar de nomes como José Avillez, Elena Arzak, Pascal Barbot ou Quique Dacosta — mais alguns dos chefs entrevistados –, mas a forma como eles reagiram ao produto final é bom presságio. Vários destes “génios”  utilizaram as redes sociais para expressar a sua admiração por este “We, Chefs”e, alguns deles, até preferiram expressar-se diretamente com o autor: “O livro tem tido uma receptividade óptima, não podia pedir mais. Vários chefs mandaram-me fotos com o livro, sem eu lhes pedir nada. De Singapura à Austrália. O Alain Passard, por exemplo, escreveu uma coisa simpaticíssima.”

Já nas despedidas, João Wengorovius deixa um pensamento final: “Ter as melhores receitas do mundo não fazem de ti o melhor chef. Não basta seguir instruções. Há qualquer coisa de mágico no toque que certos chefs conseguem impor na sua comida  eque faz com que ela seja impossível de copiar.” Essa tal “magia” é o que vai encontrar explicado neste livro.