O médico e músico dos Sétima Legião, Ricardo Camacho, morreu esta quarta-feira com 64 anos. O teclista da banda estava internado na Bélgica e sofria de cancro do pulmão, confirmou o músico Rodrigo Leão, que também fez parte da formação que ficou conhecida pelos sucessos Sete Mares ou Por quem não esqueci. 

Além dos Sétima Legião, Ricardo Camacho, que nasceu na Madeira, esteve envolvido na produção de discos como Foram Cardos, Foram Prosas, de Manuela Moura Guedes e Estou Além, de António Variações, além de ter colaborado com grupos como Xutos e Pontapés, UHF ou GNR. O músico esteve também fortemente envolvido nos lançamentos da editora Fundação Atlântica, em que colaborou com Pedro Ayres Magalhães, também músico, e com o jornalista e escritor Miguel Esteves Cardoso.

[“Sete Mares”, dos Sétima Legião, do álbum Mar D’Outubro, de 1987:]

“Ele começou como produtor do grupo, era um grande amigo, aprendi muito com ele, no início dos anos 1980, vivemos intensamente todos os concertos. É um bocadinho da Sétima Legião que morre”, disse Rodrigo Leão à agência Lusa, recordando o início da Sétima Legião, com o álbum  A Um Deus Desconhecido, editado originalmente em 1984, depois de um primeiro single, “Glória/Partida”, lançado no ano anterior.

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Além das colaborações com músicos e bandas, do trabalho enquanto compositor, intérprete e produtor e da atividade de editor, Ricardo Camacho também foi nome ligado a programas de rádio como o Rock em Stock ou o Mão na Música.

“Uma pessoa extremamente inteligente” que “tinha sempre um ar cansado”

Carlos Maria Trindade conheceu bem Ricardo Camacho. O produtor e músico dos Corpo Diplomático, Heróis do Mar e Madredeus recorda ao Observador uma pessoa “extremamente inteligente, muito discreta, low profile” que tinha um “grande grau de curiosidade” musical e a que o som dos Sétima Legião “deve muito”.

Perdemos o contacto nos anos 1990. Vi-o há uns anos [em 2013] num concerto no Estádio do Restelo, a propósito dos 20 anos do [festival] Portugal ao Vivo, em que estiveram os Sétima Legião e os Madredeus. Achei curioso revê-lo nos bastidores porque estivemos à conversa sobre estúdios, sobre máquinas. Como se não tivessem passado uns 20 anos desde que nos tínhamos visto, como se estivéssemos ali com a maior naturalidade a prolongar as últimas conversas que tínhamos tido, precisamente sobre o mesmo assunto. Parecia que o tempo não tinha passado”.

A memória que Carlos Maria Trindade tem de Ricardo Camacho é de um músico “muito acima da média” na sua época, que por isso mesmo “subiu a produtor”. Nos anos 1980, ser produtor em Portugal era uma profissão algo ingrata, já que “as editoras pagavam-nos mais ou menos o que achavam que deviam pagar”, que era pouco, “às vezes só pagavam despesas”. Os produtores musicais não tinham representação sindical ou alguém que os defendesse (ao contrário dos músicos), pelo que Camacho e Trindade alinharam estratégias para que a profissão fosse melhor remunerada. “Provavelmente fomos os primeiros produtores a receber royalties, os primeiros a receber à percentagem”, acrescenta Carlos Maria Trindade.

A postura como médico: “Tinha um grande grau de humanidade”

Quando Carlos Maria Trindade o conheceu, Ricardo Camacho já conciliava a profissão de música (“o seu grande amor”, recorda Trindade) com a de médico. “Já exercia”. Talvez por causa disso, Camacho “tinha sempre um ar cansado”, recorda Trindade. “Parecia uma pessoa que já não ia à praia há uns anos, que se calhar nunca teria ido à praia. Tinha duas profissões com horários complicados e tinha o ar de alguém que trabalhava muito de noite, de estúdio”.

Olhava-se para ele e via-se que era alguém que trabalhava muito, precisamente por conciliar duas profissões tão exigentes”, aponta Carlos Maria Trindade

A “humildade” e a “enorme humanidade” são outros traços do caráter do músico evocados por Carlos Maria Trindade. “Como médico, por exemplo, ele sentiu-se na obrigação de colaborar por exemplo com as unidades de tratamento dos então chamados doentes contaminados”. Em meados dos anos 1980, o conhecimento sobre a SIDA e outras doenças sexualmente transmissíveis era ainda parco na sociedade portuguesa, havendo muito preconceito sobre os pacientes. “Nesses anos, em que se soube o caso do António Variações, por exemplo, ele falava comigo sobre essas doenças, sobre as condições dos hospitais. Sentia obrigação de ajudar esses pacientes”.

Os Deuses (des)conhecidos

Ricardo Camacho estudou e exerceu medicina, primeiro no Instituto Português de Oncologia e depois no hospital Egas Moniz. Nesta última unidade hospitalar, Camacho dirigiu o Laboratório de Virologia até 2013, segundo o jornal Público. Camacho foi ainda professor universitário e investigador convidado do Rega Institute for Medical Research, na Bélgica.

Pregal da Cunha: “Ele ouvia um trovão e queria logo gravar”

Ao Observador, Rui Pregal da Cunha, músico dos Heróis do Mar, também usa adjetivo “curioso” para descrever Ricardo Camacho. “Nos anos em que ele apareceu, em que nós aparecemos, estávamos todos a descobrir tudo na música. Talvez por isso tivéssemos todos um elevado grau de curiosidade, não sei se era característica dos músicos da altura…”

Recordo do Ricardo um interesse experimental muito grande. Era uma pessoa que ouvia um trovão e queria logo gravar aquele som para usar como bombo”, lembra Rui Pregal da Cunha.

“Nunca trabalhei com ele na faceta dele de produtor, mas o que via era sempre uma pessoa afável, muito educada e muito entusiástica”, recorda Pregal da Cunha. A importância de Camacho, alerta o músico, não se reduz à influência que teve como compositor, intérprete e produtor. A Fundação Atlântica, editora em que Ricardo Camacho era uma espécie de “produtor da casa”, foi um grande marco na música portuguesa, que “merecia ser revisto, porque só mesmo os músicos mais carolas e interessados é que conhecem a produção da Fundação”, que é fundamental, entende Pregal da Cunha. A editora durou apenas dois anos mas lançou discos de grupos como os Sétima Legião, Xutos e Pontapés, Delfins e Durutti Column.

Ao Observador, em 2015, Ricardo Camacho explicou qual era a intenção dos fundadores da Fundação Atlântica: “Criar o seu projeto editorial, sem depender de grandes estruturas; marcar a evolução da música, imprimindo-lhe o seu cunho pessoal. Foi essa a nossa ideia, penso. Creio que o Miguel Esteves Cardoso e o Pedro Ayres Magalhães também concordarão com isto”.

A influência dos Joy Divison

Os Joy Divison, de Ian Curtis, foram uma das bandas de maior influência para Ricardo Camacho enquanto músico e produtor. Ao Observador, Ricardo Camacho chegou a confirmar isso mesmo: “Foi o meu som de referência durante muitos anos”.

O António Sérgio foi o primeiro a passar Joy Division na rádio, mais precisamente o álbum Unknown Pleasures. Mas o verdadeiro boom de popularidade aconteceu quando o Luís Filipe Barros passou, no [programa] Rock em Stock, o single “Love Will Tear Us Apart”, seguido do álbum Closer e do single “Atmosphere”, acrescentava o médico, músico e produtor.

Ricardo Camacho revelou ainda que o tema “Foram Cardos, Foram Prosas”, de Manuela Moura Guedes (que o próprio produziu), “foi feito para soar a Joy Division desde o início”. A canção teve a colaboração dos músicos Toli César Machado, dos GNR, e de Vítor Rua, dos Telectu. “Todos queríamos que a canção soasse daquela maneira. Talvez por isso o resultado tenha sido tão conseguido. Até a Manuela, que no início tinha outras ideias, acabou por entrar no espírito geral” lembrava Camacho.

“Tinha um som próprio” mas “não ficou agarrado ao passado”

Ricardo Camacho foi “um dos primeiros produtores portugueses a ter um som próprio”, explica o radialista Henrique Amaro, da Antena 3, acrescentando: “O Ricardo Camacho era um operário. Ajudou a construir uma coisa que não existia e a que se chamou a música moderna portuguesa” e “tinha um som que era dele, muito influenciado pela escola inglesa, às vezes melancólico e alicerçado numa tecnologia que ele na altura já dominava”.

Henrique Amaro faz a distinção entre o trabalho de Ricardo Camacho com os Sétima Legião — de que era parte vital, mas no qual integrava um trabalho coletivo — das suas funções como arranjador e produtor, mais individuais. Nestas, colocava “uma névoa, um mistério, um negrume, uma nostalgia” que eram muito devedoras da modernidade inglesa que ele e Miguel Esteves Cardoso, por exemplo, ouviam nas novas bandas inglesas, como os Joy Division e os New Order. Porém, misturava isso com a herança musical portuguesa, criando um universo próprio.

Ele criava um ambiente de sintetizadores profundamente enraizado na escola inglesa, numa modernidade emergente em Inglaterra, com sons tradicionais da música popular portuguesa”, aponta Henrique Amaro.

Esse “toque” musical, que apresentava “um Portugal e uma Lisboa com uma certa neblina”, ouvia-se em várias produções de Ricardo Camacho, como “Remar Remar”, dos Xutos & Pontapés, “Foram Cardos, Foram Prosas”, de Manuela Moura Guedes e até (embora um pouco menos) “Estou Além”, de António Variações. Mas o músico, médico e produtor “não ficou agarrado ao passado, estava atento ao que estava a acontecer”, alerta Henrique Amaro: “Trabalhou por exemplo num disco dos Da Weasel, o 3º Capítulo [de 1997], o que mostra isso mesmo”.

“Como músico ele fazia parte de um núcleo de pessoas interessadas em fazer coisas novas. Não teve tanta popularidade como por exemplo o Zé Pedro, que morreu há menos de um ano, porque era um daqueles músicos invisíveis. Não era uma estrela, era muito sóbrio, não dava muitas entrevistas, escondia-se atrás do teclado. Como pessoa era uma pessoa muito de laboratório [foi investigador médico] e como músico também o era”, aponta Henrique Amaro.

O radialista lembra ainda o “papel na rádio” de Ricardo Camacho — “era muito próximo do António Sérgio e esteve nos anos mais simbólicos da Rádio Comercial” — e destaca o último disco dos Sétima Legião, Sexto Sentido, de 1999, como um disco “muito Ricardo Camacho”.

Ministro da Cultura destaca “contributo fundamental à produção musical portuguesa”

Numa nota enviada à imprensa, o Ministro da Cultura Luís Filipe Castro Mendes “manifesta o seu pesar pela morte de Ricardo Camacho”. Sublinhando que os Sétima Legião, banda de que Camacho foi membro, “marcaram gerações e conquistaram um lugar na história do pop rock português”, o Ministro refere que o médico, músico e produtor “deu um contributo fundamental à produção musical portuguesa, não só pelo seu percurso como músico dos Sétima Legião, mas também como produtor de outras formações e artistas de destaque no panorama nacional”.

“À Família enviam-se sentidas condolências”, conclui a nota de pesar do Ministério da Cultura.

Nota – Numa primeira versão deste artigo, escrevia-se que Ricardo Camacho foi membro fundador da banda Sétima Legião. Apesar de ter colaborado com o grupo desde cedo (produziu o primeiro ‘single’ da banda, “Glória”), na verdade Camacho só se tornou membro efetivo dos Sétima Legião em 1985. Pelo lapso, as nossas desculpas.