O Banco de Portugal não aceitou a garantia de Angola ao BES pela falta de informação fundamental para a tornar elegível, segundo a sentença que a Lusa teve acesso, que considerou legal a resolução do BES.

Na sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, de quase 250 páginas e assinada por 20 juízes, é citada a defesa do Banco de Portugal no processo em causa e é referida também a garantia soberana que Angola deu ao Banco Espírito Santo Angola (BESA) no final de 2013, no valor de 5,7 mil milhões de dólares, e que Ricardo Salgado tem vindo a acusar as autoridades portuguesas de terem deitado fora, penalizando o banco de que era presidente.

Segundo o tribunal, na defesa apresentada, o Banco de Portugal indicou que no documento da garantia havia a “falta de envio dos Anexos I e II”, onde deveriam estar identificados os créditos e os imóveis protegidos, o que “impossibilitou o supervisor de proceder a uma análise integral e cuidada que permitisse aferir do compromisso assumido e a verificação cabal dos requisitos prudenciais (…), designadamente o de saber qual o efetivo objeto dessa garantia”.

O Tribunal Administrativo de Lisboa diz mesmo que “resulta claramente probatório que o BES não forneceu ao Banco de Portugal — não obstante a insistência deste último para o efeito — as informações necessárias à elegibilidade da mesma para efeitos prudenciais”.

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Além disso, diz o Banco de Portugal que em 27 de julho o Banco Nacional de Angola informou que após inspeção ao BESA percebeu que havia créditos problemáticos não cobertos pela garantia e que impôs um conjunto de medidas corretivas.

A garantia veio a ser revogada por Angola a 4 de agosto de 2014, no dia seguinte à resolução do BES em Portugal.

Em início de março, em entrevista à TSF, o último presidente do BES, Ricardo Salgado, perguntou se se “conhece algum Estado que tenha desprezado uma garantia de outro Estado”, referindo que o então “Presidente da República de Angola [José Eduardo dos Santos] fez questão de assinar e dizer que era ‘first demand'”.

A sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, a que a Lusa teve acesso, foi noticiada pelo Expresso este fim de semana e significa a primeira vitória do banco central, imerso em 400 processos que contestam as medidas tomadas na resolução do BES, uma vez que considera que decisão do banco central de 03 de agosto de 2014 foi legal e constitucional. Contudo, é passível de recurso, o que deve acontecer.

Apesar da complexidade do seu teor e da legislação citada, esta sentença faz um importante resumo do que se passou nos BES nos meses antes da resolução: nos finais de 2013, o BdP “intensificou vigilância” ao BES; em 14 de fevereiro de 2014 a proibição do BES de vender papel comercial do Grupo Espírito Santo (GES) sem autorização do banco central; a determinação em 14 de fevereiro de medidas de reforço dos rácios de capital (que leva ao aumento de capital de junho, de 1.045 milhões de euros); as medidas que obrigam à substituição dos administradores do BES em julho (destaque para a saída de Salgado e substituição pelo economista Vítor Bento, caindo a hipótese de subir a presidente Morais Pires, braço-direito de Salgado no banco).

A imposição em 22 de julho de uma provisão especial de 2.000 milhões de euros para riscos da exposição ao (GES); a fuga de depósitos que se intensifica após 10 de julho e que ascenderá a seis mil milhões de euros; a intimação em 29 de julho para um plano de recapitalização com recurso a fundos privados (nunca aconteceria porque, segundo o Banco de Portugal, anteriores interessados desapareceram); a apresentação, em 30 de julho de 2014, de prejuízos históricos de 3.557,3 milhões de euros, referentes ao primeiro semestre, mais 1.500 milhões de euros do que os comunicados em 10 de julho, devido à descoberta de perdas por recompra de obrigações próprias e de garantias prestadas a um credor da Venezuela (as cartas de conforto); e, por fim, a retirada pelo Banco Central Europeu do estatuto de contraparte ao BES, exigindo-lhe a devolução dos 10 mil milhões de euros que lhe tinha emprestado.

Todos estes eventos confluíram na resolução do BES, em 03 de agosto de 2014, considerando o tribunal que, perante solvabilidade insuficiente e falta de liquidez, “não havia um cenário alternativo [à resolução] que não fosse o da liquidação”, o que seria ainda pior já que, além de ter custos para os credores e acionistas, prejudicaria ainda “o erário público e bem assim o contribuinte e ainda o depositante”.

Quanto à alternativa de injeção de dinheiro pelo Estado, diz o tribunal que isso teria de ser uma decisão do Governo, não do Banco de Portugal, e que mesmo essa só teria benefícios para os credores subordinados e os acionistas.

“Note-se que a questão da recapitalização pública, enquanto medida menos gravosa, na ótica apresentada pelos autores da presente ação, só o é numa perspetiva totalmente individual e utilitarista do erário público”, lê-se na página 214.

Esta sentença debruça-se ainda sobre o decreto-lei do Governo que permite a resolução (DL 114-A/2014, de 01 de agosto), porquanto os autores da ação defendem a sua ilegalidade, uma vez que o Governo deliberou sobre um tema para que precisava de autorização legislativa do parlamento, com o tribunal a considerar esse diploma legal, numa parte da sentença muito intrincada do ponto de vista jurídico em que até é citado o livro “O Capital”, de Karl Marx, a propósito da intervenção estatal nos meios de produção.

O tribunal não dá ainda razão aos autores da ação judicial quando consideram que o Banco de Portugal não deu a informação toda ao mercado quando já em julho de 2014 dizia que o BES era sólido, considerando que “toda e qualquer comunicação ou exteriorização por parte do Banco de Portugal, anterior a 28 de julho é certa, correta e verdadeira”, isto “face aos dados de que dispunha naquelas datas”.