O Papa Francisco considera que a pandemia da Covid-19 é uma “resposta da natureza” à humanidade e uma “chamada de atenção contra a hipocrisia” de alguns líderes políticos. Numa entrevista por escrito ao seu biógrafo, Austen Ivereigh, publicada esta quarta-feira no The Tablet e na Commonweal e cuja versão original em espanhol foi publicada no diário espanhol ABC, o Papa revela ainda como está a viver este tempo de isolamento no Vaticano: “com muita incerteza“.

“Esta crise afeta-nos a todos: ricos e pobres. É uma chamada de atenção contra a hipocrisia. A mim preocupa-me a hipocrisia de certos personagens políticos que falam de associar-se à crise, que falam da fome no mundo, e enquanto isso fabricam armas. É o momento de nos convertermos dessa hipocrisia funcional. Este é um tempo de coerência. Ou somos coerentes ou perdemos todos”, afirma o Papa Francisco.

O líder da Igreja Católica também não tem dúvidas de que a pandemia deixa em evidência a difícil relação entre o Homem e a natureza: “Há um ditado espanhol: Deus perdoa sempre, nós de vez em quando, a natureza nunca. As catástrofes parciais não foram atendidas. Hoje em dia, quem fala dos incêndios da Austrália? Ou de que há um ano e meio um barco cruzou o Pólo Norte porque se podia navegar, porque se tinha dissolvido os glaciares? Quem fala de inundações? Não sei se é vingança, mas é a resposta da natureza“.

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“É certo que alguns governos tomaram medidas exemplares com prioridades bem definidas para defender a população. Mas vamo-nos dando conta de que todo o nosso pensamento, goste-se ou não, está estruturado à volta da economia. No mundo das finanças, parece que é normal sacrificar. Uma política da cultura do descarte. Do princípio ao fim”, lamenta o Papa Francisco.

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Bergoglio dá um exemplo: “Saiu uma fotografia, no outro dia, de Las Vegas, onde eram postos em quarentena num parque de estacionamento. E os hotéis estavam vazios. Mas um sem-abrigo não pode ir para um hotel. Aí se vê em funcionamento a teoria do descarte“.

Para Francisco, é fundamental evitar cair na tentação de fazer, perante os mais pobres e os sem-abrigo, “uma política assistencialista como fazemos com os animais abandonados“. “Muitas vezes, tratam-se os pobres como animais abandonados”, acrescenta o Papa.

O líder da Igreja Católica adverte também para os perigos do populismo em tempos como os atuais. “Hoje, aqui na Europa, quando se começa a ouvir discursos populistas ou decisões políticas desse tipo seletivo não é difícil recordar os discursos de Hitler em 1933, que eram mais ou menos o mesmo que os discursos de algum político europeu de hoje“, disse o Papa, alertando para a necessidade de “recuperar a memória”.

Dois turnos para refeições na casa do Papa

“Não é fácil estar fechado em casa”, admite o Papa Francisco na entrevista. “Vem-me à mente um verso da Eneida no meio da derrota: o conselho de não baixar os braços. Reservem-se para melhores tempos, porque nesses tempos recordar isto que passou vai ajudar-nos. Cuidem-se para um futuro que está para vir. E quando chegar esse futuro, recordar o que se passou vai fazer-vos bem. Cuidem o agora, mas para amanhã. Tudo isto com a criatividade. Uma criatividade simples, que inventa todos os dias. Dentro do lar não é difícil encontrá-la. Mas não fugir, escapar-se em alienações, que neste momento não servem.”

Papa Francisco elogia “heróis” que “se expõem ao perigo para curar esta pandemia”

“Rezo mais, porque penso que devo fazê-lo, e penso nas pessoas”, conta o Papa Francisco, sobre os seus dias de isolamento. “Tenho os meus próprios egoísmos: na terça-feira vem o confessor, ou seja, aí arrumo as coisas. Penso nas minhas responsabilidades de agora e para o depois. Qual vai ser o meu serviço como bispo de Roma, como cabeça da Igreja, no depois? Este depois já começou a mostrar que vai ser um depois trágico, um depois doloroso, por isso convém pensar desde agora. Organizou-se, através do Dicastério do Desenvolvimento Humano Integral, uma comissão que trabalha nisto e que se reúne comigo.”

Na residência de Santa Marta, onde o Papa Francisco vive com muitos dos altos funcionários da Cúria Romana, foram organizados dois turnos para as refeições, revela o Papa, sublinhando que essa organização “ajuda bastante a aliviar o impacto”. Ao mesmo tempo, “cada trabalha no seu escritório ou no seu quarto com os meios digitais”.