*entrevista realizada com Ana Filipa Rosa, da Rádio Observador.

Vivem-se tempos de tremenda incerteza e todos estão cientes disso. Da saúde a economia, passando pela ciência e o desporto, não há área da sociedade moderna que tenha escapado ilesa à crise trazida pela pandemia do novo coronavírus. Em Portugal, os últimos anos cimentaram o país como um dos polos turísticos mais procurados do mundo e à boleia disso, a área da restauração e da gastronomia ganhou mais destaque e importância. De repente, todo o mundo sabia o que eram pastéis de nata ou pasteis de bacalhau. A gastronomia portuguesa ganhou novo fôlego e uma das caras dessa renovação foi a do chef José Avillez.

O cozinheiro português mais reconhecido internacionalmente destacou-se como uma das vozes do setor e como tal, em tempos de dificuldade, medo e desconhecimento, a sua voz precisava de ser ouvida. Foi precisamente por isso que o chef aceitou o convite da Rádio Observador para conversar não só sobre a forma como tudo isto o está a afetar a si mas como afetará todos no geral. Numa conversa de pouco mais de vinte minutos assumiu que alguns restaurantes que teve de encerrar por culpa do Estado de Emergência, não voltará a abrir. Que os despedimentos também serão inevitáveis e que o futuro próximo trará “um razia sem precedentes neste setor”.

[Oiça aqui a entrevista em direto que foi realizada via telefone]

Chef José Avillez admite: “Há restaurantes que nunca mais vou conseguir abrir”

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Estamos a viver tempos muito particulares e a restauração, como sabemos, é uma dos setores mais afetados. Como têm sido estes dias?
Uma agitação bastante diferente, com uma rotina distinta e muitas preocupações com o presente e com o futuro. O que temos tentado fazer agora, mais que tudo, é focarmo-nos em quem está ainda pior que nós. Temos dedicado grande parte do nosso tempo à solidariedade, temos preparado cerca de mil refeições por semana que são entregues a pessoas do centro de Lisboa que não têm o que comer. Ou porque não se podem deslocar ou porque já não têm dinheiro para comprar alimentos.

Uma crítica que tem surgido entre pessoas menos familiarizadas com o funcionamento de um restaurante é o facto desta área ter passado uma fase boa nos últimos anos mas mesmo assim não foi capaz de fazer uma espécie de fundo de maneio que pudesse ajudar em situações difíceis como esta (que foi totalmente imprevisível). Que resposta se pode dar a isto?
Não consigo falar por todos mas sim pelo setor no geral, uma área que tem margens de lucro muito baixas e mão de obra intensiva e especializada. Este setor tem muitos custos e gera dinheiro, essencialmente, para o dia a dia — o que não quer dizer que uma empresa não vá acumulando riqueza se não estiver sempre a investir. O que aconteceu nos últimos anos — especialmente em Lisboa e no Porto — é que apesar do crescimento turístico, muitas empresas e restaurantes (grandes, pequenos ou médios) foram entrando em contraciclo. Ou seja, esta crise apanhou-os numa fase de investimento, com dívidas, com rendas a aumentarem muito, obras igualmente. Ou seja, sem grande capacidade de guardar riqueza.

Estou certo que não vou conseguir manter todos os meus funcionários, os meus colegas. Estou certo que não vou conseguir ter todos os meus restaurantes abertos. Acho que vai haver uma razia sem precedentes neste setor. Vão fechar centenas e centenas de restaurantes ao longo deste ano.

O Grupo Avillez tem perto de 500 empregados… Muitos deles em layoff?
Sim, praticamente todos. Alguns estão a assegurar o take-away que temos no Bairro do Avillez, outros estão como voluntários na entrega das refeições solidárias e um mínimo a tomar conta do escritório para tratar de processamentos salariais e contabilidade.

Perspetivando aquilo que acontecerá no pós-pandemia, vai conseguir manter todos os seus espaços abertos? Manter funcionários?
Temos muitas incertezas, ainda. Não temos diretivas claras do Governo, não sabemos quando é que é para abrir, quando acaba o layoff, se haverá uma prolongação do mesmo layoff para o setor (que eu defendo que tem de existir para que não fechem mais de 50% dos restaurantes do país)… Estou certo que não vou conseguir manter todos os meus funcionários, os meus colegas. Estou certo que não vou conseguir ter todos os meus restaurantes abertos. Acho que vai haver uma razia sem precedentes neste setor. Vão fechar centenas e centenas de restaurantes ao longo deste ano.

Acredita que muitos conceitos de restauração terão de mudar ou adaptar-se a novas realidades, à tal “nova normalidade” que tanto se fala?
A nova normalidade há de ser passageira e eu acho que será preciso ter capacidade de adaptação. O layoff é a única medida de apoio direto à economia, tudo o resto ou são moratórias ou endividamento. As próprias moratórias acabam por ser também um endividamento, só que indireto, já que a pessoa terá de pagar mais à frente. Vamos estar pelos menos dois meses encerrados por ordem do Estado, a ter pagar rendas de espaços que não usufruímos. Isso complica muito o cenário de uma eventual sobrevivência do comércio e da restauração. Como será possível pagar os custos que vão surgir nessa altura com uma realidade sem muitos clientes? Com fronteiras fechadas, voos limitados, companhias aéreas low cost a dizerem que não voam. Com a insegurança e incerteza será muito difícil as empresas pagarem os custos que tiverem no momento, os atrasados que vêm de trás e os que aparecem quando as moratórias acabarem.

“A entregar as refeições solidárias em Alfama e na Mouraria. Sorrisos tristes e agradecidos de pessoas que não têm o que comer.” escreveu o chef na sua página de Instagram. @joseavillez

Não há dúvida que muitos restaurantes vão ter de se transformar mas infelizmente, em muitos casos, a adaptação não será suficiente para se conseguir continuar com o negócio. Fala-se muito também em defender postos de trabalho mas há uma coisa que acho que é clara mas sobre a qual pouco se  fala: sem empresas não há postos de trabalho. Falamos dos ovos mas se não houver galinhas para os por, não há nada. Se não houver uma empresa para empregar não se salva nenhum posto de trabalho. Tem de se proteger as empresas para que elas consigam manter os seus empregados. Eu por definição sou otimista e acredito sempre que aquilo que não nos mata torna-nos mais fortes, mesmo assim, esta vai ser uma longa, longa batalha que ainda agora começou. É bem possível que a cura chegue a matar mais que a doença.

Apesar de ainda não existir nenhuma diretiva concreta sobre as medidas a serem implementadas, já se começa a falar sobre o que poderemos vir a encontrar nos restaurantes quando as restrições à circulação começarem a ser levantadas. Há quem sugira limitações mais apertadas na lotação dos espaços, controlos de temperatura aos clientes… Já recebeu alguma informação sobre este assunto?
Estamos à espera. Sei que o governo pediu uma opinião à AHRESP, a maior associação de restaurantes em Portugal. Há diretivas da OMS e europeias, até, mas não se sabe ao certo aquilo que poderá vir a ser exigido. Contudo passará certamente pelo distanciamento das mesas, as máscaras, as viseiras, o gel desinfetante, a medição de temperatura dos funcionários e clientes… Temos muitos desafios pela frente. Obviamente que a logística ficará mais complicada mas temos de nos adaptar. Será mais difícil para restaurantes com áreas pequenas, mesmo inviável, até.

Aproveito para abrir um parênteses: Na altura falou-se  muito que os restaurantes deviam fazer take-away mas eu não conheço praticamente nenhum com esse serviço que seja a ser rentável. De facto, entre as comissões de transporte ou o estar em layoff, o take-away acaba por ser muito pouco rentável…

Não posso ter a arrogância de dizer que o governo não está a fazer o suficiente. É verdade que nos falta muita coisa mas é verdade também que isto caiu nos braços dos governantes e são muitas as áreas de intervenção.

Esse tipo de serviços acabam por ser um penso rápido quando aquilo que é preciso é uma cirurgia…
Nós temos o take-away aberto no Bairro do Avillez e acho que acaba por ser um serviço que estamos a prestar. Tenho a certeza absoluta que há alguns restaurantes que nunca mais vou conseguir abrir. Vamos ter de assumir muitas perdas, despedir muitas pessoas… Aliás, já não estamos a renovar contratos há mais de um mês. Por mais que isso me custe — eu vivo muito intensamente aquilo que faço e estas pessoas, mesmo que sejam muitas, são como uma família para mim, considero-as muito e custa-me não poder continuar com elas — estamos a tentar salvar um todo.  Ou uma parte do todo, pelo menos. Temos de tomar decisões decisões de gestão muito difíceis…

Portanto já tem projetos concretos que sabe que vai encerrar?
Já. não vou falar deles mas sim.

Há pouco dizia que tem estado a distribuir refeições nos bairros lisboetas de Alfama e Mouraria. Qual é o cenário que tem encontrado?
Estamos com uma parceria com a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior e da Misericórdia. Ainda ontem fui distribuir refeições nesses dois bairros e é um cenário no mínimo triste. Essencialmente estamos a dar refeições a pessoas idosas que não podem sair de casa ou que não têm rendimentos para comprar comida de outra maneira. Não consigo dizer que há pessoas a passar fome porque não vi — mas não tenho dúvida que haja. Há uma fome envergonhada.

“Espero um dia conseguir voltar a abrir os Restaurantes e continuar a fazer o que melhor sabemos: cozinhar e cuidar. Mas o mundo mudou tanto e tão rápido. Nada será igual. A única coisa que podemos fazer agora é ajudar quem mais precisa, quem tem ainda mais incertezas, quem tem ainda mais medo. Continuamos com esperança, fé e a alegria possível neste momento de profunda tristeza global. Quem está em casa, com saúde, com família e que tem o que comer… Talvez não precise de mais nada.” @joseavillez

Temos entregue refeições também a pessoas que costumavam circular pelo Chiado a arrumar carros ou a cantar. Pessoas que comiam com os euros que ganhavam no dia. Estou em contacto com algumas delas e temos-lhes dado algum apoio. Se pensarmos bem, o que acontece com uma sociedade que se fecha em casa um mês e meio ou dois? Que repercussão é que isso tem? Sabemos que as pessoas que vivem de uma economia informal, de pedir esmola ou arrumar carros, vivem com dinheiro que agora desapareceu. Os sem abrigo estão a aumentar cada vez mais, já deixa de haver comida suficiente para alimentá-los a todos.

De que forma é que as pessoas podem contribuir para que os seus restaurantes possam sobreviver a esta fase?
Eu tenho divulgado no meu instagram e no do Bairro do Avillez algumas iniciativas de associações que se juntaram para criar vales que possam ser comprados agora para mais tarde serem utilizados. Muitos restaurantes estão a vender os seus próprios vouchers — nós vamos começar afora a fazer isso, por exemplo. Acho que estamos a fazer o que é mais necessário neste momento que é ajudar pessoas que não têm o que comer, algo que é muito mais grave. Estamos a falar de necessidades básicas. Mas obviamente que me preocupa muito o futuro da restauração em geral e dos meus restaurantes e das pessoas que trabalham comigo em particular. Mas sei que como eu há milhões de pessoas no mundo inteiro.

Não posso ter a arrogância de dizer que o governo não está a fazer o suficiente. É verdade que nos falta muita coisa mas é verdade também que isto caiu nos braços dos governantes e são muitas as áreas de intervenção. Eu tenho estado em contacto permanente com vários intervenientes do governo e outras entidades e sei que se está a trabalhar de sol a sol para tentar fazer o melhor. A verdade é que isto é uma crise sem precedentes — pelo menos nesta geração, algo comparável apenas com uma guerra ou com o crash da bolsa — e não se percebe  muito bem que apoios vamos ter da Europa, se vamos ter cá o FMI outra vez ou se a austeridade regressará. Há de facto uma enorme crise de saúde e houve um trabalho muito bem feito em Portugal, quando comparado com outros países. Conseguimos que o nosso SNS não tenha atingido o limite. Continuamos todos a lutar e a tentar olhar para as coisas boas que este isolamento nos trouxe: No meu caso, com saúde e família, fez-me poder estar mais com os meus filhos e a minha mulher, poder cozinhar para eles, algo que em dez anos de vida do meu filho mais velho e 12 de estar com a minha mulher, nunca tinha cozinhado tanto para eles como nestas últimas semanas.