Um dos estudos científicos mais citados para desvalorizar o impacto e a letalidade do novo coronavírus (SARS-CoV-2), realizado por investigadores da universidade de Stanford (Califórnia, EUA), foi parcialmente financiado pelo empresário David Neeleman, fundador da JetBlue Airways e atual principal acionista privado da companhia aérea portuguesa TAP.
A revelação surge numa grande investigação do site norte-americano BuzzFeed News, que lembra que Neeleman foi, enquanto grande empresário do setor da aviação, um dos grandes afetados pelas medidas de contenção impostas em vários países para tentar travar ou pelo menos desacelerar a propagação da pandemia.
A informação chegou ao BuzzFeed News através de um queixa de um denunciante (whistleblower) feita à universidade de Stanford. Só com a denúncia foi tornada pública a informação de que o empresário e acionista da TAP ajudou a financiar o estudo, embora Neeleman tenha escrito sobre a investigação e elogiado o estudo publicamente, referindo apenas que chegara a “conhecer pessoalmente” os autores. O estudo foi alvo de revisão posterior, por algumas falhas detetadas, e a revelação sobre o financiamento de Neeleman levanta dúvidas sobre eventuais conflitos de interesses.
Entre as medidas de contenção decretadas em boa parte do mundo para travar o coronavírus estiveram o encerramento de fronteiras e fortes restrições ao tráfego aéreo. A TAP, aliás, aderiu ao regime de apoio público lay-off, devido à paralisação do setor da aviação e ao cancelamento da quase totalidade dos voos da companhia aérea .
Estudo sugeria que letalidade era semelhante à da gripe
O estudo em causa foi revelado pela primeira vez a 17 de abril, ainda em regime de pré-publicação, isto é, sem ter sido sujeito a revisão de pares. A partir de testes serológicos (para detetar anti-corpos) feitos a uma amostra de 3.300 pessoas residentes em Santa Clara, na Califórnia, os autores concluíam que o número de pessoas infetadas na cidade era 85 vezes superior ao número de casos oficialmente confirmados: 2.5% a 4.2% da população local teria já sido infetada com o vírus.
Somando o número de infeções oficialmente detetadas ao número de infetados que teriam escapado ao radar das autoridades de saúde locais — por serem assintomáticos ou terem sintomas muito leves da doença Covid-19 — os autores calculavam então a partir da amostra uma nova taxa de letalidade para o SARS-CoV-2, bastante mais baixa do que a até aí estimada. A taxa de mortalidade seria afinal de 0,12% a 0,2%, semelhante à do vírus da gripe, o que significaria que apenas uma a cada duas pessoas morreriam por cada mil infeções. No caso da população que não é considerada de risco, o risco seria praticamente ínfimo.
O estudo acabou por ser alvo de revisão cerca de duas semanas depois, depois de fortes críticas de cientistas aos métodos utilizados pelos autores, dos quais constava o famoso cientista John Ioannidis, refere o Buzzfeed News.
Segundo esta investigação, um infeciologista de Stanford consultado durante a realização do estudo terá manifestado preocupações com as conclusões, referindo que os testes tinham eficácia muito duvidosa na deteção de anticorpos — o que permitiria perceber que pessoas já tinham efetivamente sido infetadas ou não com o novo coronavírus. Posteriormente, terá recusado mesmo que o seu nome fosse incluído entre os autores do estudo por discordar da fiabilidade das conclusões apresentadas.
Outro especialista, também ele académico da mesma universidade de Stanford, terá também colocado em causa a eficácia dos testes usados na população que serviu de amostra, alertando ainda antes da pré-publicação para o risco de serem incluídos casos de “falsos positivos” e recomendando que as 3.300 pessoas voltassem a ser testadas para não haver dúvidas. Segundo o Buzzfeed, tal não aconteceu antes da pré-publicação.
A universidade de Stanford já reagiu. Através da porta-voz do departamento de medicina Julie Greicius, assumiu o seguinte após ser confrontada pelo Buzzfeed News: “A Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford está a par das preocupações sérias relacionadas com o estudo (…) Quando nos chegam problemas como este, são levados muito a sério. O assunto está a ser avaliado pelos mecanismos apropriados de supervisão de Stanford”.
Neeleman assume doação de 5 mil dólares, mas nega influência direta
O denunciante que originou a investigação do Buzzfeed News vai tão longe quanto dizer que David Neeleman teve influência na escolha dos investigadores envolvidos no estudo que financiou, selecionando académicos que “partilhavam a sua opinião de que o vírus era menos mortal do que se acreditava”, segundo a investigação do BuzzFeed. A informação é negada quer pelos autores do estudo, quer por David Neeleman.
Um dos principais autores do estudo, o famoso cientista John Ioannidis, já veio dizer ao Buzzfeed News que “pessoalmente” não estava a par de que David Neeleman estivesse entre os financiadores da investigação. Uma informação contrariada por Neeleman, que terá defendido que os autores estavam a par do seu envolvimento financeiro. “Não sei exatamente quem foram as pessoas que acabaram por financiar o estudo. Mas sejam quem forem, nenhum deles nos disse que o estudo devia ser orientado de determinada maneira ou que deveria procurar ou concluir determinado tipo de resultado”, garantiu Ioannidis.
Já David Neeleman confirmou ter doado 5 mil dólares (aproximadamente 4.620 euros) à universidade de Stanford para apoiar a produção deste estudo e confirmou também que manteve contacto com os investigadores durante a elaboração do estudo. O empresário, porém, negou ter tido qualquer influência nos métodos adotados ou nos resultados apresentados, vincando ter “uma grande integridade” e garantindo que não teve acesso aos resultados antes da pré-publicação online.
A garantida foi corroborada por outro dos autores do estudo, Eran Bendavid, mais um académico da universidade de Stanford que disse que foram múltiplos os “financiadores com os seus próprios interesses” e que apontou ainda que os autores estiveram “em contacto com muitas pessoas, algumas das quais poderão ou não ter financiado o estudo”, informação que garante desconhecer por não estar a par de quem foram os financiadores. “Isso não significa que influenciaram o nosso estudo”, vincou.