A Organização Mundial de Saúde (OMS) anunciou esta quarta-feira que vai retomar os ensaios clínicos com hidroxicloroquina em doentes com Covid-19, suspensos há mais de uma semana por preocupações com a segurança daquele medicamento. Os ensaios clínicos foram suspensos depois de um artigo na revista médica The Lancet concluir que o uso do medicamento poder aumentar risco de morte. Desde aí, muitos especialistas têm questionado os dados apresentados — até a própria revista.

Os autores do artigo, publicado a 22 de maio, não só não encontraram benefícios no uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento de doentes com Covid-19, como viram que o uso destes medicamentos aparecia associado à diminuição da taxa de sobrevivência dos doentes nos hospitais e a um aumento da frequência de arritmias ventriculares. Três dias depois, a OMS suspendeu os ensaios clínicos em curso para avaliar a segurança e eficácia dos medicamentos.

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Nem uma semana depois já havia cientistas a questionarem-se sobre a veracidade dos dados — por exemplo, os dados sobre a Austrália não correspondiam aos dados oficiais. E na semana passada um grupo de cerca de 180 cientistas enviou uma carta à revista de The Lancet a pedir que os dados fossem corrigidos ou retirados.

“Há enormes dúvidas sobre a qualidade desse trabalho e tanto os seus autores como a revista que o publicou vão ter de prestar contas”, disse Pedro Alonso, diretor do programa de malária da OMS, citado pela edição brasileira do El País. “[O estudo] tem um nível de inconsistências alarmante.”

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No sábado, a revista The Lancet publicou uma correção enviada pelos autores que em nada altera as conclusões do artigo — os autores dizem que os dados da Austrália estavam errados por culpa do hospital que os forneceu. Depois disso, esta terça-feira, a revista emitiu uma “nota de preocupação” em relação ao artigo.

“Foram levantadas questões científicas importantes sobre os dados relatados no artigo”, escrevem os editores da revista. “Embora uma auditoria independente sobre a proveniência e validade dos dados tenha sido pedida pelos autores não afiliados à Surgisphere — e esteja em andamento, com resultados esperados muito em breve —, emitimos uma Nota de Preocupação para alertar os leitores sobre o fato de que questões científicas sérias foi trazidas à nossa atenção.”

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A Surgisphere é uma pequena empresa norte-americana que o jornal The Guardian descreve como tendo uma mão cheia de funcionários, entre os quais “um escritor de ficção e um modelo de conteúdos para adultos”. Foi esta empresa que forneceu os dados para o artigo publicado na revista The Lancet — e outros estudos noutras revistas —, mas o jornal britânico contactou alguns hospitais que alegadamente terão contribuído para essa base de dados e nenhum deles diz sequer conhecer a empresa.

Sapan Desai é o fundador e diretor executivo da Surgisphere e é um dos autores do artigo da revista The Lancet. Assim como também é autor de um artigo publicado, a 1 de maio, na revista New England Journal of Medicine (NEJM). Mais uma vez, os dados fornecidos pela Surgisphere estiveram na base do artigo. Por isso mesmo, esta terça-feira, também a NEJM publicou uma “nota de preocupação”.

“Recentemente, foram levantadas preocupações significativas sobre a qualidade das informações nesta base de dados. Pedimos aos autores que forneçam evidências de que os dados são confiáveis“, escreve Eric J. Rubin, editor-chefe da revista. “Enquanto isso, e para o benefício de nossos leitores, publicamos esta Nota de Preocupação sobre a confiança nas conclusões.”

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Esta quarta-feira, Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, anunciou que o painel que analisa a segurança dos medicamentos concluiu que “não há razão para alterar o protocolo dos ensaios clínicos solidários [com cloroquina e hidroxicloroquina] e recomendou que continuem em todas as vertentes”. Ghebreysus afirmou que a OMS vai continuar a “controlar a segurança” do uso do medicamento em doentes com Covid-19, mas que vai seguir com os ensaios clínicos com mais de 3.500 pacientes voluntários de 35 países.

O uso de cloroquina e hidroxicloroquina para tratar doentes com Covid-19, está a ser testado em ensaios clínicos e tem sido usado um pouco por todo o mundo apesar das fracas evidências de que possa trazer benefícios aos doentes. As opiniões sobre a segurança dividem-se, como mostrou o Observador, mas há sinais de que as doses mais altas podem trazer complicações graves para os doentes.

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De onde surgiu a Surgisphere?

A Surgisphere é uma empresa de análise de dados de saúde e educação médica e tem tido um lugar de destaque sobretudo desde a publicação do artigo da revista The Lancet. Mas não pelos melhores motivos. Os cientistas põe em dúvida que os dados sejam verdadeiros: os dados são demasiado homogéneos nos vários continentes.

Os investigadores questionaram não só os dados australianos, que não correspondiam aos dados oficiais, mas também os de África, destaca a revista The Scientist. Como teria a empresa conseguido um número tão grande de registos eletrónicos de doentes em África — 4.402 doentes hospitalizados, num total de 15.738 reportados até 14 de abril —, onde mesmo os melhores hospitais têm um mau registo dos dados dos doentes?

Mais, os académicos não entendem como é que uma empresa que ninguém conhece conseguiu tantos dados clínicos em tão pouco tempo — no artigo da The Lancet são citados mais de 96 mil doentes. A empresa também não deixa claro como conseguiu ter acesso aos dados de 1.200 hospitais, como conseguiu harmonizar línguas e códigos diferentes ou sequer se está a cumprir os códigos de conduta ou proteção de dados em vigor em cada país, como refere o jornal The Guardian.

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Não é claro também como é que a empresa conseguiu tantos dados anonimizados e como é que consegue manter e analisar uma base de dados tão grande com uma equipa de apenas 11 pessoas. A juntar a isto, o jornal The Guardian diz que a informação que existe publicamente sobre os funcionários da empresa não faz referência a formação científica: o editor científico parece ser autor de ficção científica e a funcionária responsável pelo marketing é modelo e anfitriã de eventos.

As suspeitas de má conduta não recaem apenas sobre a empresa. Sapan Desai enfrenta três processos de má prática médica, dois dos quais de novembro de 2019. O médico despediu-se do Hospital Comunitário de Northwest, no Illinois, em fevereiro deste ano.

Artigo atualizado às 20h55 com informação sobre a empresa e as preocupações expressas pelas revistas científicas.