Eram precisas 60 mil assinaturas para que a iniciativa popular de referendo sobre a despenalização da morte assistida fosse obrigatoriamente discutida e votada no plenário do Parlamento, mas quantas mais assinaturas fossem entregues, mais pressão seria feita junto do Parlamento. Foi assim que, esta quinta-feira ao final da manhã, a Federação Portuguesa pela Vida entregou um total de 95.287 assinaturas ao presidente da Assembleia da República. Os avolumados dossiês verdes que foram entregues em mãos a Ferro Rodrigues faziam figura: 70 mil assinaturas foram recolhidas em papel, e as restantes através da petição online. Quer isto dizer que vai haver referendo, depois de a despenalização da eutanásia já ter sido aprovada, na generalidade, no Parlamento? Nem por isso.
“Hoje vimos aqui entregar estas 95.287 assinaturas que foram recolhidas em pouco mais de 30 dias de norte a sul do país”, sendo que mais de 70 mil são em papel, afirmou José Seabra Duque, do movimento cívico #simavida, promotor da Iniciativa Popular de Referendo sobre a (des)penalização da morte a pedido (eutanásia), que tem o apoio da Igreja Católica, em conferência de imprensa nas escadarias da Assembleia da República.
José Seabra Duque explicou ainda que o processo de referendo precisava de 60 mil assinaturas e foram recolhidas mais de 95 mil, esperando por isso que “os deputados respeitem esta iniciativa”. “Foi um movimento inorgânico de pessoas que só podemos descrever como um sobressalto cívico contra a eutanásia que movimentou milhares de pessoas”, sublinhou.
Segundo José Seabra Duque, as assinaturas estão prontas desde março, mas “perante a pandemia que assolava o país”, o movimento pensou e considerou que “era um tempo de esforço nacional, de salvaguarda de todas as vidas, não era o tempo da política, era o tempo da ação”.
“Contudo, infelizmente, alguns deputados consideram que a urgência para o país é a sua agenda ideológica e não enfrentar a crise que aí está e, por isso, graças a essa obsessão de que a eutanásia seja sempre o tema mais urgente, vimos hoje aqui entregar as assinaturas para dar início ao processo popular de referendo para que o povo possa ser ouvido”, sublinhou.
Embora considerando que “o tempo é de união nacional no combate pela defesa da vida, no combate contra a crise sanitária que ainda não desapareceu e, sobretudo, contra a crise social que já começou a instalar-se”, o movimento achou não poderia deixar de exercer a sua responsabilidade de “tentar travar esta lei injusta”. “Não poderíamos deixar de cumprir a nossa obrigação de vir aqui para que o povo tenha uma hipótese de ser ouvido”, reiterou José Seabra Duque, que integrava uma delegação da comissão executiva da iniciativa.
Proposta de referendo deverá bater na parede do Parlamento
Acontece que, apesar de a iniciativa popular de referendo ter dado entrada no Parlamento com as assinaturas necessárias para ser debatida em plenário, tal não significa que o Parlamento vá de facto convocar um referendo sobre o tema. Como o Observador explicava aqui, nas vésperas da aprovação dos projetos de lei, a hipótese do referendo não parece ter muitas pernas para andar. O facto de a petição ter recolhido as assinaturas necessárias significa apenas que tem direito de ser discutida na Assembleia da República e votada — mas tem de ser aprovada pela maioria dos deputados. E é aí que está o obstáculo: não há uma maioria no Parlamento a defender a realização de um referendo à eutanásia.
Eutanásia pode mesmo ser aprovada. O que querem os partidos?
Ainda que no PSD haja várias vozes a favor do referendo — o que foi muito visível no congresso do partido, em fevereiro, com Paulo Rangel à cabeça a defender a realização da consulta popular, no Parlamento apenas o CDS e o Chega se manifestaram a favor da consulta popular. Rui Rio, já se sabe, é a favor da despenalização da morte medicamente assistida e na altura foi vincadamente contra as movimentações de uma ala do seu grupo parlamentar que queria apelar à convocação de um referendo. Mesmo que o PSD fosse a favor de um referendo, não forma uma maioria parlamentar com o CDS e o Chega. Já o PCP, que é contra a eutanásia, também é contra o referendo. Assim sendo, só se algum dos partidos promotores das iniciativas legislativas para a despenalização da morte assistida, como o PS ou o BE, mudasse de ideias sobre a consulta popular é que a iniciativa de cidadãos teria hipóteses de ser viabilizada. O que não deverá acontecer.
O movimento promotor da iniciativa tem como mandatários personalidades como o antigo Presidente da República António Ramalho Eanes, a ex-presidente do PSD Manuela Ferreira Leite, o politólogo Jaime Nogueira Pinto, a ex-deputada do CDS-PP Isabel Galriça Neto, o presidente da Caritas, Eugénio Fonseca, ou o ex-bastonário da Ordem dos Médicos Germano de Sousa”.
A Iniciativa Popular de Referendo incide sobre a pergunta “Concorda que matar outra pessoa a seu pedido ou ajudá-la a suicidar-se deve continuar a ser punível pela lei penal em quaisquer circunstâncias?”. Mesmo que fosse aprovada a proposta de consulta popular — que só pode ser solicitada via Parlamento ou Governo — o Tribunal Constitucional ainda teria de se pronunciar sobre a constitucionalidade da pergunta, antes de o Presidente da República convocar, de facto, o referendo.
Deputados reúnem-se para dar gás à proposta de lei
Depois de a despenalização da morte assistida ter sido aprovada na generalidade, no Parlamento, a 20 de fevereiro, o processo legislativo não terminou por aí. Depois disso, era preciso os cinco projetos de lei aprovados (do PS, BE, PAN, PEV e IL) descerem à especialidade para serem consensualizados num texto comum, sendo que ainda eram esperadas mais algumas audições antes de o processo estar fechado. Depois disso, era preciso o texto de substituição subir novamente ao plenário para ser votado em votação final global. Finalmente, o diploma iria para as mãos do Presidente da República que ainda poderia pedir a fiscalização sucessiva da sua constitucionalidade ao Tribunal Constitucional antes de o promulgar, ou poderia mesmo vetá-lo, o que faria com que o diploma voltasse para trás, e a AR tivesse de alterá-lo ou reconfirmar a votação.
Este seria o processo normal, que já poderia estar em vias de estar concluído, se não tivesse havido uma pandemia que deixou durante dois meses os trabalhos parlamentares reduzidos aos mínimos. Ainda assim, no passado dia 27 de maio, ficou a saber-se pela conferência de líderes que o debate na especialidade dos projetos de lei sobre a despenalização da morte medicamente assistida iria ser retomado através de um grupo de trabalho criado ainda antes da pandemia para o efeito.
O grupo de trabalho é presidido pela deputada social-democrata Mónica Quintela, que afirmou desde logo que iria dar início às reuniões, uma vez que ainda era expectável que se realizassem audições antes de os deputados tentarem elaborar um texto de substituição, tendo por base os 5 projetos de lei.
A primeira reunião desse grupo decorreu no passado dia 3 de junho, tendo ficado decidido que seria a deputada do PS Isabel Moreira quem iria trabalhar num texto de substituição. A próxima reunião decorre esta quinta-feira, estando previsto que se defina o calendário legislativo. Ao Observador, a deputada socialista confirmou que estava a trabalhar no documento, mas pediu “calma”, uma vez que finalizada a proposta de texto, é preciso que os deputados dos vários partidos analisem o texto e acertem agulhas até concordarem todos com a versão final.
A grande dúvida é se vai ou não ser possível terminar o processo legislativo até ao verão, uma vez que o calendário parlamentar está com pouca margem devido à discussão do Orçamento Suplementar. Ao Observador, o deputado bloquista que tem assento no grupo de trabalho, José Manuel Pureza, admitiu que pode ser possível uma vez que “os cinco projetos são parecidos, pelo que não será assim tão difícil chegar a um texto de substituição”. Há, no entanto, “pelo menos três audições” que já foram pedidas, mas também isso o deputado bloquista espera que não seja motivo para atrasar o calendário legislativo uma vez que ficou definido que seriam feitas num mesmo dia, caso a agenda o permitisse. São estas questões de calendário que vão ser discutidas e decididas esta tarde, sendo certo que a corrida é contra o tempo.