A Polícia de Segurança Pública (PSP) anunciou esta sexta-feira que vai apresentar uma queixa-crime contra o jornal Público por causa de um cartoon publicado pelo suplemento Inimigo Público que, diz a força de segurança, “associa a PSP a um qualquer movimento político-ideológico, afetando publicamente a isenção e apartidarismo que caracterizam a instituição”.
O autor do cartoon considerou, entretanto, que “criminoso é acharem que isto é um crime, que um criativo, um jornalista, um opinion maker, um cartoonista não pode ter direito à sua liberdade de expressão”. Já o diretor do Inimigo Público, Luís Pedro Nunes, afirmou que, “quando uma sociedade começa a ir atrás dos cartoonistas, é sempre sintomático de qualquer coisa” e mostrou-se perplexo por a PSP tirar “a tarde de sexta-feira para emitir um comunicado relacionado com um cartoon num jornal satírico” após uma semana de acontecimentos graves.
O cartoon em questão é da autoria do ilustrador Nuno Saraiva e surge esta sexta-feira na primeira página do suplemento satírico Inimigo Público. No cartoon é possível ver várias pessoas com tochas na mão e máscaras. A imagem ilustra uma sátira com o líder do Chega, André Ventura, e é uma referência clara à manifestação de extrema-direita que ocorreu no último fim-de-semana em frente à sede do SOS Racismo — na qual foram usadas, precisamente, tochas e máscaras.
Essa manifestação, com o nome “parada Ku Klux Klan”, terá sido convocada por membros da Resistência Nacional, um novo grupo que reúne antigos militantes da Nova Ordem Social, Partido Nacional Renovador e dos Portugal Hammer Skins.
Num comunicado divulgado nas redes sociais, a PSP escreve que, “no referido cartoon, que aparentemente está relacionado com uma ação com conotação política, ocorrida no passado sábado, em frente à sede da organização SOS Racismo, em Lisboa, surge uma figura caricaturada vestida com um uniforme da PSP”.
A polícia afirma que a ilustração afeta a isenção da instituição, que resulta “não só de obrigação estatutária e da condição policial, mas também da convicção dos polícias que a integram”.
“A Estratégia PSP 2020/2022, aprovada pelo Diretor Nacional, é clara sobre esta matéria, referindo a ‘Isenção e rejeição de qualquer forma de extremismo e discriminação’ como um valor e um pilar ético fundamental”, acrescenta a nota. “A PSP lamenta a leviandade com que o jornal e o cartoon em questão feriram a boa imagem da instituição e dos polícias que nela servem e protegem os nossos concidadãos.”
“Por a PSP considerar que os factos referidos ofendem a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos à instituição consubstanciando a prática de crime, serão os mesmos, ainda hoje, formalmente participados ao Ministério Público e exercido o direito de queixa pelo Diretor Nacional”, conclui o comunicado.
Autor do cartoon reage: “Criminoso é acharem que um cartoonista não pode ter direito à sua liberdade de expressão”
Entretanto, o ilustrador Nuno Saraiva, autor do cartoon, reagiu ao anúncio da queixa, considerando que é criminoso atentar contra a liberdade de expressão e mostrou-se “preocupado” com o rumo do país.
“Criminoso é acharem que isto é um crime, que um criativo, um jornalista, um opinion maker, um cartoonista não pode ter direito à sua liberdade de expressão”, afirmou Nuno Saraiva, em declarações à Lusa.
Realçando que nem sequer é adepto dos cartoons “mais escatológicos e altamente ofensivos”, do género dos do jornal satírico francês Charlie Hebdo, o ilustrador português considera que este é até “um cartoon bastante pacífico”.
Por isso mesmo, julga “absolutamente exagerado e sem sentido para uma queixa-crime”.
Quanto a esta possibilidade, Nuno Saraiva deixa claro que não está minimamente preocupado consigo, mas sim com “o caminho que o país está a trilhar”.
“Parece que estamos a dar uma reviravolta para mais de 40 anos atrás, isso é que me preocupa. E o silêncio institucional preocupa-me também”, afirmou, considerando que nos últimos tempos sente que “está tudo muito pesado e esquisito”, uma situação que, confessa, o “assusta”.
No entanto, Nuno Saraiva deixa claro que não vai explicar o seu cartoon: “Um cartoon vale por si. Os desenhos ilustrados têm a faculdade de ter várias interpretações”.
Luís Pedro Nunes: “Quando uma sociedade começa a ir atrás dos cartoonistas, é sempre sintomático de qualquer coisa”
Também o diretor do Inimigo Público, Luís Pedro Nunes, já reagiu à queixa da PSP mostrando-se “perplexo” com o anúncio e lamentando que se tenha perdido a capacidade de leitura da sátira na sociedade portuguesa. “Estou perplexo com o tempo disponível que a direção da PSP tem para se dedicar a processos-crime contra cartoons em suplementos satíricos”, disse Luís Pedro Nunes em declarações à Rádio Observador.
Queixa-crime contra Cartoon. “Estou perplexo. A PSP tirou o dia para isto”
“Temos 860 edições, temos milhares de cartoons publicados, uns com mais acutilância, outros com menos, nenhum processo até hoje, seja a cartoons ou a notícias”, acrescentou. “Eu estou espantadíssimo com isto. Até porque o cartoon não é dirigido à polícia, não é dirigido sequer… Acho que 2020 é um ano cheio de surpresas e de acontecimentos extraordinários, mas hoje já me ri várias vezes a tentar explicar o cartoon. O que quer dizer que o cartoon está mal conseguido — é uma hipótese —, ou as pessoas recusam-se a ler o cartoon, ou a sátira morreu. Há essa hipótese, as pessoas já não terem capacidade de ler sátira.”
“O cartoon em si não tem a ver com a manifestação, tem a ver com a sociedade portuguesa. Vai buscar a imagética da manifestação desta semana e faz uma leitura, utilizando essa imagem, a imagética das máscaras e das tochas, e vai usar vários tipos que esta semana foram surgido na sociedade portuguesa e nos últimos meses, que se escondem atrás de uma máscara, que é do Ventura”, sublinhou Luís Pedro Nunes. “O cartoon é sobre André Ventura, não é sobre a manifestação desta semana e não é sobre a polícia.”
O diretor do Inimigo Público destacou ainda que existem no cartoon diferentes personagens que representam diferentes setores que se “escondem” atrás de Ventura. “Estão ali vários tipos de pessoas que se escondem atrás da máscara de Ventura, entre os quais, de vez em quando aparece um polícia. Aparece, é verdade. Mas também está ali um tipo com uma camisola de adepto de futebol, está outro com um casaco muito vistoso, que nós quiséssemos que fosse um apresentador de televisão que tem sido alvo de polémicas, que esta semana esteve aí em polémicas do Instagram e noutras quezílias por causa de um cantor que foi cantar a um comício do Chega e ele foi defendê-lo”, acrescentou Luís Pedro Nunes referindo-se a Manuel Luís Goucha.
“Aquilo era uma representação do que a sociedade portuguesa tem tido e que se tem escondido atrás da máscara e da carantonha do Ventura”, afirmou.
“Esta manhã, o Movimento Zero, movimento inorgânico da PSP, movimento sem cara — lá está, sem cara —, começou a exigir à direção nacional da PSP — está lá esta manhã, no Facebook do Inimigo Público e no meu —, aí está, uma dessas caras brancas, sem face, e que se esconde às vezes da máscara do tal Ventura, exigiu à PSP que tomasse posição, e a PSP esta tarde tomou. É isto que a sátira faz. Desconstruir a realidade. Não é ir acusar a PSP de infâmia e de grandes dramas. Está lá o retrato. Vejamos. A direção da PSP quer ser literal e ser literal não é como a sátira funciona. E mais não posso estar a explicar. Um cartoon é um cartoon é um cartoon. É um cartoon de primeira página, é um cartoon editorializado, do qual eu me responsabilizo e sou coautor”, disse Luís Pedro Nunes.
“Aguardo acima de tudo que o diretor nacional da PSP se ponha a pensar que se isso for para a frente vai ser uma situação, no mínimo curiosa, vermos no julgamento a discutir o quão literal é um cartoon na sociedade portuguesa. Quando uma sociedade começa a ir atrás dos cartoonistas, é sempre sintomático de qualquer coisa”, considerou. “Um cartoon é o que é. Estamos todos na era de nos ofendermos muito. Olhando para a semana que passámos, com a gravidade dos acontecimentos desta semana, a nível institucional, a nível de problemas graves a nível social, a direção nacional da PSP tirou a tarde de sexta-feira para emitir um comunicado relacionado com um cartoon num jornal satírico que nem sequer tinha como ponto central a Polícia de Segurança Pública. Não tenho muito mais a acrescentar.”
Atualizado às 18h20 com a reação do ilustrador Nuno Saraiva à agência Lusa e às 19h08 com a reação de Luís Pedro Nunes à Rádio Observador