O veículo todo-o-terreno percorre sem dificuldade as curvas de terra batida que contornam a mancha de vinha da Quinta da Leda, no Douro. O percurso de alguns minutos já faz parte da apresentação do novo Barca-Velha, com a paisagem daquela que é a espinha dorsal do icónico vinho a aguçar a curiosidade momentos antes do jantar. Outro bónus é descobrir por mero acaso que quem nos guia é um ex-piloto de rally, cujas histórias de um passado experimentado parecem dar mais pujança ao carro que se desfaz dos altos e baixos da estrada com aparente facilidade. “Conduz-se com o pé, o rabo e as costas”, comenta, falando na importância da intuição, a mesma que cedo fez soar os alarmes do enólogo Luís Sottomayor face ao ano de 2011, sobre o qual nunca teve dúvidas.
Mediante aviso prévio, o jipe interrompe a marcha e somos convidados a sair junto a vinhas que descem ordeiras na direção do rio. A localização foi escolhida a dedo: estamos na Vinha do Apiadeiro, de onde sai a casta Touriga Francesa que nos últimos anos tem sido a grande base do Barca-Velha. Preservadas do sol da tarde e com sombra a partir das 17h, as videiras gozam de uma maturação “longa e equilibrada”, diz Sottomayor. Junto ao local que mais define a essência do rótulo em destaque, são abertas garrafas de Mateus Rosé: o momento não deixa de ser simbólico, uma vez que o vinho rosé criado em 1942, acomodado numa garrafa inspirada nos cantis usados pelos soldados da Primeira Guerra Mundial, continua a ser a base da Sogrape.
A pandemia não se limitou a atrasar o lançamento do Barca-Velha 2011, previsto para maio, como obrigou a adaptar o evento de apresentação — dividido em três dias, com um número máximo de 20 participantes e ao ar livre. Mas o que podia ser um constrangimento da crise global de saúde pública, não o foi: o intervalo de meses é insignificante para um vinho que nasceu para envelhecer bem e o jantar acontece numa mesa de madeira corrida, enfeitada com flores, velas e loiças Bordallo Pinheiro, e sobranceira q.b ao rio Douro, que visto daí parece embalado num sono profundo.
“Realmente, 2011 foi um ano extraordinário. Nunca tivemos dúvidas sobre o destino final do vinho, foi sobretudo uma questão de paciência”, comenta Sottomayor ao Observador antes deste ser servido. “Já tinha praticamente a certeza de que ia ser um Barca-Velha, mas é evidente que não o podia dizer.” Engarrafado em maio de 2013, esteve desde então à espera de permissão para sair além da rolha — tinha de mostrar “todo o seu potencial” e ser boa companhia à mesa.
Se na apresentação do Barca-Velha da colheita de 2008 — o primeiro vinho não fortificado do país a receber 100 pontos pela revista da especialidade Wine Enthusiast — Sottomayor descrevia um vinho com alguma austeridade, sendo até preciso “falar com ele”, o ex-líbris mais recente da Casa Ferreirinha (pertença da Sogrape desde 1987) é mais direto. “É como se fosse um leão e o leão é o rei da selva. Quando chega não teme nada. Está à vontade em todo o lado porque sabe o que vale e sabe que é respeitado por todos”, continua o homem que o criou.
O vinho estagiou em barricas de carvalho francês durante 18 meses, sendo que o potencial de envelhecimento permanece um mistério, ainda que o seu “apogeu” esteja estimado para daqui a 15 a 20 anos. Na sua composição leva ainda Touriga Nacional, “importante para a complexidade aromática”, Tinta Roriz, que é “o sal e a pimenta do vinho” e algum Tinto Cão, “para realçar ainda mais a acidez que é necessária para que um vinho tenha capacidade de evoluir durante muitos anos.”
O rótulo em questão nasce apenas em anos considerados excecionais. Ainda assim, desde 1952 já se contam uns quantos. Este é o 20º Barca-Velha da história, número que inclui o misterioso ano de 1955, que em 2017 ficou confirmado tratar-se efetivamente de uma referência da casa. Luís Sottomayor tem as colheitas na ponta da língua e, num teste de memória improvisado, faz uma enumeração sem falhas. Os 20 rótulos foram concebidos por três enólogos, incluindo o pioneiro Fernando Nicolau de Almeida, que chegaram a trabalhar todos juntos.
“Entrei para a Sogrape em 1989, por isso acompanhei todos os Barca-Velha daí para cá. Os dos anos 1980 já estavam engarrafados, provei os vinhos antes da declaração, mas é evidente que a minha opinião valia o que valia na altura. Daí para cá participei na conceção do lote de 1991, 1995 e 1999… 2000 já foi decisão minha.” 2004, 2008 e agora 2011 também.
“Espero ainda fazer mais alguns”, confessa, deixando claro que os anos de 2012 e 2013 já estão excluídos da equação. “Mas temos outros nos fornos. Vamos ver…”, continua. Até lá, há um “leão” à solta no mercado já a partir do final de setembro/início de outubro.