O cenário repetiu-se por todo o país nas últimas semanas. No primeiro dia de escola, os professores conversaram com as crianças sobre os cuidados para evitar a Covid-19 enquanto não há uma vacina. Numa escola da zona de Lisboa, os gémeos Guilherme e Gonçalo, de oito anos, assentiram enquanto ouviam a professora do terceiro ano, mas trataram de a descansar no final: “Ainda não há vacina, mas a nossa mãe está a fazer uma”.
Helena Florindo ri ao contar a história dos filhos, mas para a professora de Farmácia Galénica e Tecnologia Farmacêutica da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa tudo isto é também ainda surpreendente: até fevereiro deste ano, ela e a sua equipa dedicavam-se ao desenvolvimento de vacinas, mas contra o cancro. E, de repente, o mundo mudou. E o foco do trabalho da investigadora também.
Há exatamente um ano, Helena Florindo e a investigadora israelita Ronit Satchi-Fainaro – com quem trabalha em parceria há bastante tempo – publicaram na revista científica britânica Nature Nanotechnology os excelentes resultados de uma vacina terapêutica contra o melanoma metastático. As notícias eram boas: tinham conseguido aumentar, com sucesso, a sobrevivência de ratinhos de laboratório. A vacina – que se armazena em forma de pó, o que facilita o transporte e armazenamento – reeduca o sistema imunitário para reagir contra os marcadores biológicos das células tumorais, estimulando uma resposta protetora que inclui a produção de anticorpos contra o cancro.
Mas, quando a pandemia se instalou, em março, a investigadora portuguesa e a coordenadora do Cancer Research & Nanomedicine Laboratory da Universidade de Tel Aviv, resolveram redirecionar os seus esforços porque acreditaram que tinham em mãos uma forma de fazer a diferença: as nanovacinas antitumorais que estavam a estudar há anos poderiam funcionar como plataforma de uma vacina para a Covid-19.
Uma vacina pode mostrar ao corpo como é o vírus que deve combater, e com o qual nunca teve contacto, de várias formas diferentes. Algumas usam uma versão fraca ou inativada para o “apresentar” ao corpo – como a atual vacina contra o sarampo –, outras, em vez de todo o vírus, utilizam apenas porções de proteínas para estimular a resposta imunológica – é o caso da atual vacina da tosse convulsa e também da vacina para a Covid-19 que Helena Florindo e Ronit Satchi-Fainaro estão a tentar criar. Mas a característica principal da vacina que as duas investigadoras tentam desenvolver – uma a partir da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa e outra a partir da Faculdade de Medicina Sackler da Universidade de Tel Aviv, com contactos permanentes entre os dois laboratórios – tem menos que ver com o que é dado ao organismo e mais com a forma como é dado. Se forem bem-sucedidas, poderemos ter uma nova vacina contra a Covid-19 dentro de dois anos.
Uma nanovacina tenta entregar estas proteínas – ou antigénios – diretamente às células onde elas têm de atuar”, explica a investigadora. Desta forma, em vez de administrarmos uma vacina que se vai disseminar de forma igual e difusa por todo o organismo, o princípio ativo é colocado dentro de uma nanoesfera. “Esta nanopartícula tem uma espécie de ‘chave’ que vai entrar na fechadura que está à superfície das células que nos interessam. Assim, asseguramos um melhor transporte e reconhecimento que pode permitir, por exemplo, ter maior duração da resposta imune.”
Tudo o que precisaram de fazer desde março foi mudar os “ingredientes ativos” transportados pela partícula, substituído o seu interior por proteínas do SARS-Cov-2, em vez de proteínas de um tumor.
Ainda não há nenhuma vacina no mercado que funcione desta maneira (ou tenha esta constituição), mas esta plataforma de entrega tornaria tudo mais eficaz. “Seria a diferença entre ter de enviar cartas para todos os moradores de uma cidade – porque não sabemos bem onde vivem aqueles que queremos contactar – ou, pelo contrário, termos a morada completa dos destinatários e um GPS para lá chegar.”
A parte científica do projeto está em curso e bem encaminhada. Mas, para ser bem sucedido, vai ser preciso bem mais do que apenas boa ciência. É preciso superar o famoso “vale da morte”, que no jargão da inovação se refere à dificuldade em transformar o conhecimento num produto comercializável que chega efetivamente ao mercado. A maioria das boas ideias fica perdida a meio caminho, numa espécie de cemitério da inovação por concretizar, tanto por falta de apoio financeiro como empresarial. Ou seja, hoje, os cientistas precisam de formação para que as suas ideias se transformem em negócios.
E é aí que entra o financiamento. Com o programa CaixaImpulse Covid-19 express, lançado pela Fundação “La Caixa” propositadamente para soluções de combate à pandemia, obtiveram em junho passado 300 mil euros para o projeto “Desenvolvimento de uma vacina translacional contra a COVID-19”. Além do financiamento da investigação, o programa pretende assistir os investigadores nesta longa travessia. “Ajuda-nos a dar esses passos essenciais para fazer a passagem do meio académico ao mercado. Vamos ter acompanhamento, consultoria e mentoring para montar um plano de negócio, captar o investimento necessário à produção em escala, ter apoio no contacto com as agências reguladoras e, eventualmente, constituir uma empresa para fazer toda a gestão deste processo. Porque o importante – apesar de difícil – é fazer chegar a inovação a quem precisa dela.” Que neste caso somos todos nós.
Na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, as aulas já começaram, mas os corredores permanecem ainda estranhamente vazios. Corredores que Helena conhece bem porque, apesar de ter apenas 41 anos, já os percorre há mais de vinte. Foi aqui que fez o curso de Ciências Farmacêuticas e o doutoramento na área de nanovacinas – em colaboração com a University College of London. Começou a dar aulas como assistente estagiária, em 2008, e há dias recebeu a notícia da sua promoção a Professora Associada. É aqui também que lidera o seu próprio grupo de investigação na área de Bio-Nano-Ciência. Concilia assim as duas coisas que mais preza profissionalmente: dar aulas e ter a liberdade para escolher o que quer investigar.
No dia em que a encontramos, corre a notícia da suspensão do ensaio clínico (entretanto retomado) da vacina que a farmacêutica AstraZeneca está a desenvolver com a Universidade de Oxford, mas a investigadora não se mostra preocupada: garante que é algo que faz parte do processo e que acontece com frequência. Continua a acreditar que vai haver boas notícias em breve. “É expectável que haja pelo menos uma vacina aprovada no início de 2021.”
E é exatamente por isso que há uma pergunta que tem ouvido com frequência a propósito do seu projeto: se já há outras vacinas mais adiantadas, para que precisamos de mais uma que, na melhor das hipóteses, só está pronta daqui a dois anos? A resposta é simples: porque somos 7,8 mil milhões. “Uma vacina, ou mesmo duas, não conseguem gerar doses suficientes para vacinar toda a população mundial”, explica a investigadora. “Prevê-se que acabem por chegar quatro vacinas ao mercado. Desejo – e acredito – que a nossa será uma delas.”
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Safe and Efficacious SARS-CoV-2-targeted Vaccine/Desenvolvimento de uma Vacina Translacional Contra a COVID-19, de Helena Florindo, da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, foi um dos seis selecionados (dois em Portugal) – entre 349 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição especial dedicada à Covid do programa Caixa Impulse. A investigadora recebeu 300 mil euros. O CaixaImpulse promove a transformação do conhecimento científico criado em centros de investigação, universidades e hospitais em empresas e produtos que geram valor para a sociedade. As candidaturas para a edição de 2021 estão abertas.