Um ensaio clínico na Índia não mostrou que o uso de plasma de doentes que tinham recuperado da Covid-19 tivesse qualquer efeito positivo na redução da mortalidade ou progressão para doença mais grave. Os resultados foram publicados na revista científica BMJ.
Foram selecionados 464 adultos com sintomas moderados de Covid-19, entre abril e julho, e distribuídos, aleatoriamente, entre o grupo que receberia o plasma convalescente ao mesmo tempo que os tratamentos convencionais (com 235 doentes) e o grupo que só receberia os tratamentos convencionais, ou seja, o grupo controlo (com 229 doentes).
Nos 28 dias de acompanhamento dos doentes, 44 que receberam o tratamento com plasma convalescente e 41 que estavam no grupo controlo evoluíram para uma doença grave ou acabaram por morrer. A conclusão dos investigadores é que, comparando a evolução para casos graves ou morte nos dois grupos, não se registou diferença significativa, logo não houve benefício no uso do plasma como tratamento.
Os investigadores acautelam, no entanto, que a quantidade de anticorpos neutralizantes no plasma usado podia não ser suficiente para que houvesse um efeito significativo. Neste ensaio, os participantes tinham mesmo uma quantidade maior de anticorpos neutralizantes do que plasma que lhes foi dado e não foram encontradas diferenças significativas entre o grupo que recebeu o plasma convalescente e o grupo controlo.
“A diferença na idade e gravidade da doença entre participantes, com os doadores a serem mais jovens e com doença mais ligeira, pode justificar a diferença”, escrevem os autores no artigo. “Os doentes com doença moderada ou grave que recuperaram estão, em geral, mais relutantes em voltar ao hospital para doar plasma”, justificam.
Este é o primeiro ensaio clínico, concluído, em que os os participantes foram distribuídos ao acaso e onde havia um grupo controlo com o qual se pode comparar os resultados dos doentes tratados com o plasma convalescente —, reporta o STATNews.
Um estudo anterior, nos Estados Unidos, realizado pela Mayo Clinic mostrou benefícios no tratamento dos doentes — mais 4,8 salvas por cada 100 doentes tratados — e conseguiu a aprovação de uma autorização de uso de emergência pela agência do medicamento norte-americana (FDA, Food and Drug Administration).
Michael Joyner, que conduziu o estudo da Mayo Clinic, e Arturo Casadevall, especialista em doenças infecciosas na Escola Bloomberg de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins, ouvidos pelo STATNews, dizem que no ensaio feito na Índia os doentes receberam o plasma numa fase muito tardia da doença, quando já tinham desenvolvido os próprios anticorpos. Além disso, concordam que é preciso garantir que o plasma convalescente usado têm uma maior quantidade de anticorpos neutralizantes.
Donald Trump, FDA e plasma convalescente: ciência ou política?
O plasma convalescente para tratar doentes com Covid-19 recebeu uma autorização de uso de emergência no final de agosto, e a decisão foi comunicada por Donald Trump, em conferência de imprensa, que a classificou de “anúncio histórico. Esta conferência, que contou com a presença do comissário da FDA, Stephen Hahn, veio no seguimento da pressão que o Presidente norte-americano andava a fazer sobre a agência reguladora para aprovar tratamentos e vacinas contra a Covid-19.
A prestação de Stephen Hahn foi alvo de fortes críticas, não só por ser acusado de ceder às pressões de Trump, mas também por ter deturpado e exagerado os resultados dos tratamentos com o plasma. O comissário disse que era possível salvar mais 35 em cada 100 pessoas tratadas, quando na verdade há uma redução de 35% no risco de morte dentro de um subgrupo do ensaio (as tais 4,8 pessoas).
“Não devíamos usar plasma convalescente. Não mostrou ser eficaz a tratar os doentes”, disse Luciana Borio, antiga diretora científica interina na FDA, citada pelo STATNews. A investigadora preocupa-se também com o facto de que a autorização especial dada a este tratamento faça com que as pessoas tenham menos interesse em participar nos ensaios clínicos dos tratamentos ainda em estudo.