Para chegar de carro até à entrada principal da empresa de componentes automóveis Veneporte, em Vale Grande, no concelho de Águeda, a partir do IC2, é preciso entrar na EN 333, ao encontro da estrada municipal 606, procurando depois o número 412 da Rua Jesse Almeida. É um percurso por vias secundárias, onde persiste a paisagem de pequenos terrenos agrícolas – alguns alagados pelo dilúvio que o temporal do dia impõe –, armazéns e pinhais que teimam em mostrar as folhas pontiagudas, espicaçadas pelo vento.
Se espreitarmos da janela do escritório de Abílio Cardoso, administrador da empresa-fábrica aguedense de componentes do sistema de escape para automóveis, essa mesma paisagem bucólica repousa, nesta altura do ano, como um quadro de inverno. Predominam os tons de castanho-terroso, verde-musgo e céu-cinzento cobalto. Cardoso confessa que já não repara nela, por automatismo, denunciado as três décadas de história laboral por ali. Os campos estão divididos em parcelas de terra de forma rectangular, uns estão despidos, outros têm o que resta de uma tímida colheita de milho e que a chuva intensa trata de devolver à terra.
No dia 11 de dezembro, percebe-se que a natureza está a trabalhar, no exterior, algo parecido com aquilo que o consórcio da empresa de Cardoso, em parceria com a Universidade de Coimbra (UC), anda a tentar desenvolver, para o interior de transportes públicos e veículos particulares. Ou seja: um dispositivo que pretende purificar e renovar o ambiente, neste caso dentro dos veículos, para aumentar a qualidade do ar e diminuir a carga viral, seja por Covid-19 ou outro tipo de patógenos que possam provocar doenças.
Chama-se Clean Veneporte Solutions – Pure & Safety Air (CVS) e será um dispositivo para colocar nas viaturas. A iniciativa, que nasceu primeiro com a designação de PureAir@Automotive, para efeitos de candidatura a fundos comunitários, foi aprovada para financiamento no final de setembro. Faz parte da seleção final de 199 projetos aprovados (a partir de 286 candidaturas submetidas) ao Aviso 15/SI/2020, lançado em maio pelo Compete2020 e dirigido a empresas e centros de investigação que levem a cabo “atividades de investigação, desenvolvimento e investimento em infraestruturas de ensaio e optimização no contexto Covid-19”. A Veneporte recebeu 389 mil euros para, em parceria com a Universidade de Coimbra, desenvolver um projeto cujos custos iniciais rondarão o meio milhão de euros de investimento total. Em três meses, o primeiro protótipo ficou pronto para testes.
O consórcio que une a investigação à indústria automóvel
Abílio Cardoso e Manuel Gameiro estão sentados a cerca de um metro e meio de distância, numa das laterais da grande mesa preta da sala de reuniões da Veneporte. Além de alinhados no mesmo projeto indústria-investigação, o empresário e o professor catedrático do Departamento de Engenharia Mecânica da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UC escolheram, sem querer, os mesmos tons para a roupa do dia. Gameiro está vestido com um fato azul, costurado com cotoveleiras, usa uma camisa azul-claro, com uma gravata sedosa de cor índigo gravada com flores em azul-celeste. O blazer está abotoado. Cardoso veste uma camisa azul-bebé, sem gravata e tem o blazer desabotoado.
Dadas as restrições atuais, para diminuir o contágio por Covid-19, e tentar abreviar o tempo de contacto, a equipa preparou uma apresentação resumida sobre o CVS. Por esta altura, por causa do segredo industrial e devido à fase inicial em que se encontra o Clean Veneporte Solutions – Pure & Safety Air, não houve ainda notícias sobre esta iniciativa no espaço público. Os dois líderes de projeto vão intervindo e respondendo às questões, à medida que o assunto lhes diz respeito diretamente. O gerente de marketing, Pedro Bastos, sentado a meio da mesa e do lado oposto às lideranças, dirige o powerpoint, avançando ou recuando mediante os complementos informativos técnicos, comerciais ou científicos.
A ideia de criar um dispositivo para purificar o ar interior dos veículos de transportes públicos surge, segundo o empresário da Veneporte, da urgência em aliar duas variáveis da mesma equação: a estratégia de uma nova área de negócio e o contributo social para um problema de saúde pública. O CVS é, por isso, um “novo complemento da atividade da Veneporte”, empresa fundada em 1966 e que se especializou em sistemas de escape, catalisadores, filtros de partículas, sistema de controlo de emissões automóveis e outras componentes para a indústria. Depois, esclarece Cardoso, como a mobilidade coletiva é uma fonte de risco de contágio comprovada, era necessário “fazer algo para criar soluções”.
“Sentimos que a questão dos transportes públicos era uma preocupação diária dos cidadãos, mas era também um problema e uma preocupação das autoridades de saúde e do próprio poder político”, diz o empresário.
A Veneporte tinha já a tecnologia, e o “saber-fazer” de inovação na área. Só não tinham a experiência científica. Por isso, no final de abril de 2020, Cardoso contactou Gameiro para pensarem, junto com as equipas, “como seria possível resolver esse problema”.
Ao todo há 26 pessoas envolvidas no projeto. Da equipa de engenharia e administração da Veneporte a profissionais da Associação para o Desenvolvimento da Aerodinâmica Industrial (ADAI), instituição de investigação ligada ao Departamento de Engenharia Mecânica da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (UC), mais elementos do Departamento de Engenharia Electrotécnica e de Computadores da mesma instituição, a que se juntam profissionais da Faculdade de Medicina, com ênfase na microbiologia para avaliar parte dos resultados.
Pelo menos até junho de 2021 vão trabalhar em parceria, para não só encontrarem uma solução para purificar o ar para os transportes coletivos e individuais, como também para, a partir dos resultados obtidos, pensarem em possíveis soluções de purificação de ar para locais públicos. “Como centros de saúde, espaços comerciais, restaurantes ou bares”, exemplifica Cardoso, enfatizando que, para já, a prioridade são os veículos públicos.
O empresário de fala serena e passo acelerado
Abílio Cardoso fala com calma, como se escolhesse bem as palavras a utilizar, para melhor descrever o CVS e a nova área de negócio, enfatizando a estratégia cautelosa, para minimizar os riscos financeiros. Ele gosta de ter as contas em dia e manter uma gestão sustentada, para garantir a boa saúde financeira da empresa que administra.
Em 2019, a Veneporte foi finalista do Grande Prémio Internacional de Inovação Automóvel da Equip Auto, o salão internacional de pós-venda e serviços do sector automóvel, realizado anualmente em Paris. É a 48ª no ranking setorial. A moderação do discurso do administrador contrasta com o passo largo e apressado quando nos mostra a fábrica. São cinquenta mil metros quadrados (cerca de cinco campos de futebol) em 23 minutos que parecem cronometrados, entre barulhos estridentes e metálicos, que os tampões de ouvido obrigatórios fornecidos ensaiam amenizar.
Cardoso, que gere uma empresa com cerca de 180 funcionários, percorre com celeridade os vários corredores industriais. Há tubos metálicos empilhados, homens a soldar, faíscas da fricção no metal, mulheres com papéis administrativos nas mãos, carrinhos de um lado para o outro. Ele está na Veneporte desde 1991, onde começou no departamento financeiro. “Nessa altura a empresa estava numa situação deficitária, financeiramente muito difícil, muito desorganizada”, recorda.
Antes de ingressar na companhia que atualmente administra, numa ascensão com uma “transição gradual” para a parte comercial, o empresário de 53 anos tinha trabalhado numa holding em Coimbra que administrava várias empresas industriais. Essa sociedade financeira tinha um área de Finanças Corporativas. Foi nesse contexto que teve conhecimento do momento que a Veneporte atravessava. “Um grupo de empresários manifestaram interesse em investir na empresa.” Ele foi um deles. Ao longo dos anos trabalharam na recuperação da Veneporte até que, em 2013, ele ficou como único acionista.
Natural de Anadia, no concelho de Águeda e a viver em Coimbra, o empresário tem o retrato da família no escritório. É casado e pai de três filhos. Admite que fez “uma alteração radical” na parte comercial da empresa, que hoje exporta 90% da produção para a Europa, mas tem, também, negócios em África, sobretudo na região do Magreb, Israel e, “pontualmente”, na Rússia.
Em março de 2020, depois de passar “por uma série de aeroportos vindo de uma viagem de negócios da América Latina”, percebeu que o momento que se avizinhava iria exigir medidas rigorosas para uma empresa do setor automóvel. “A 27 de março a empresa entrou de férias, seguiu-se o regime de lay off e, depois, aos poucos entrámos gradualmente ao trabalho.”
Cardoso não é “pessoa de sonhos mirabolantes”, admite. Diz que tem antes “uma ideia de que os sonhos se constroem no dia a dia, de forma sustentada.” Foi sempre realista. Aliás, destaca que “nunca pensou em ser futebolista”, ainda que admita que essa seja uma tentação para muitos jovens, independentemente da geração. Chegou a jogar futebol durante dois anos, dos 15 aos 17 anos, na Liga dos Amigos de Aguada de Cima, no escalão de juniores. Foi capitão de equipa e reconhece que se destacou desde cedo em funções de liderança.
Licenciado em Economia, “viveu intensamente a vida académica”, foi “tesoureiro na Queima das Fitas em 1989” e não foi “um aluno brilhante”. Mas, desde que começou a trabalhar, realça, mostrou-se “uma pessoa muito dedicada ao trabalho”. Trabalha de manhã cedo até “fora de horas”: até onze ou meia-noite, inclusive aos fins-de-semana”. Diz que tem pouco tempo livre, mas profetiza que “isso vai ter que mudar”, como quem garante desde já um desejo para 2021. Até porque, ao pensar melhor, o que mais gosta de fazer no tempo livre, além de descansar, é “estar com a família e acompanhar os três filhos e a esposa”, professora universitária.
Garante que é apaixonado pelo que faz e, apesar do contexto pandémico, diz que “a Veneporte conseguiu recuperar bem”. Está convicto que o CVS vai, também, garantir a diversificação do portfólio de negócio da empresa, com sucesso. Ao lado da fábrica vão construir uma área industrial só para desenvolver este projeto, pois será necessário, entre outras funções, instalar o dispositivo nos veículos. São uma empresa vertical, dominando todo o processo, e com capacidade de subcontratar outros serviços adjacentes. “Este processo nascerá numa interação e numa cooperação de diferentes capacidades instaladas na região. Ou seja, pretendemos dominar o produto, dominar a engenharia, dominar o processo, e neste contexto subcontratar algumas atividades, que ou não temos, ou eventualmente outros terão melhor capacidade [para desenvolver e implementar].”
O professor que antecipou o futuro e brinca com papagaios
Gameiro está habituado a falar em público. É orador assíduo em conferências sobre qualidade do ar e tem presença frequente na imprensa como especialista convidado nesta área (e em climatização). No dia em que fala ao Observador, vai ter de sair mais cedo da conversa para presidir ao júri da defesa de uma prova de mestrado.
Nasceu em Coimbra, mas a família é de Albergaria dos Doze, antiga freguesia do concelho de Pombal. A História do século XII dá nota que foi local de passagem e estalagem de viajantes que procuravam albergue. D. Mafalda, mulher de D. Afonso Henriques, terá então fundado uma albergaria para os acolher. Gameiro não tem tempo para nos falar desta história. Vive desde os 15 anos em Coimbra, onde estudou. Quis ser arquiteto, mas a Engenharia Mecânica acabaria por falar mais alto. “Sonhava vir a trabalhar em design de projeto de automóveis, porque pensava em trabalhar para a indústria automóvel”, recorda. A tese de Doutoramento foi sobre a aerodinâmica de autocarros. “Comparei duas formas diferentes de autocarro: questões de otimização da forma de autocarro, mas também os escoamentos no compartimento de passageiros, questões de conforto térmico, qualidade do ar, ruído, vibrações”, relembra. “Os fabricantes de veículos normalmente não externalizam este tipo de atividade. Normalmente estão sujeitas a segredo industrial.”
Depois disso teve um contrato com uma empresa do setor automóvel e com a universidade para aprofundar a investigação doutoral. O percurso profissional entre a academia e a consultoria seria traçado desde cedo: começou por ser contratado como bolseiro de investigação, depois como assistente estagiário. Atualmente, o professor catedrático investiga, sobretudo, as questões da qualidade ambiental interior, a eficiência energética e a sustentabilidade, testes de veículos, aerodinâmica e sistemas de medição. É investigador principal e coordenador de mais de trinta projetos de investigação, patrocinados por organizações internacionais, nacionais e privadas.
Além disso, é autor e co-autor de mais de trezentas publicações, nomeadamente livros, trabalhos científicos, capítulos, conferências e relatórios técnicos a nível nacional e internacional. A 31 de março publicou, inclusive, um artigo científico seminal em que antecipa muitas das medidas hoje já obrigatórias no contexto da Covid-19. Nesse texto, foi dos primeiros cientistas a indicar quer que “devemos usar máscara mesmo no exterior” e que devíamos evitar as reuniões presenciais, advertindo para o perigo de contágio em ambientes fechados.
Essa publicação terá influenciado muitas das medidas de segurança da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN), na Suíça. “Um aluno meu é responsável pelas medidas de higiene e segurança no trabalho no CERN e fez uma apresentação baseada nas recomendações desse artigo, influenciando a estratégia de gestão do espaço, em termos de qualidade do ar.”
Mas há outra atividade a que este cientista se dedicou durante algum tempo e cujas medições foram essenciais para a base de trabalho da CVS. Em 2019, sempre que viajava, analisava a qualidade do ambiente de todos os meios de transporte que utilizou: avião, comboio, autocarro, carro. Enquanto fala, retira do bolso um pequeno dispositivo e antecipa a pergunta que se impõe. “Isto mede a concentração de CO2 [dióxido de carbono], compostos orgânicos voláteis, temperatura, humidade, pressão atmosférica e o nível de iluminância, para avaliar a qualidade dos ambientes interiores”. Ao monitorizar tudo isso constatou um grave problema: “Nos meios de transporte, principalmente, nos rodoviários, as condições típicas não são aquilo a que podemos chamar uma boa qualidade do ar”.
Gameiro é também Embaixador nomeado pela Aliança para o Desenvolvimento Sustentável, para o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 7 das Nações Unidas sobre promoção de Energias Renováveis e Acessíveis. Nos tempos livres viaja para a casa de praia em Quiaios, na Figueira da Foz. De lá vê a Serra da Boa Viagem e um areal a perder de vista. “Adoro brincar na praia com uns papagaios que dão para fazer umas acrobacias que é uma coisa que tem a ver com aerodinâmica”, graceja, sem esconder o entusiasmo, ao mesmo tempo que deixa escapar o tom de quem avisa que esta atividade exige sabedoria.
As soluções para melhorar a qualidade do ar
O professor sabe tudo sobre qualidade de ar. Primeiro, no powerpoint, exemplifica com um estudo de caso da medição da qualidade do ar, a partir da análise da presença de dióxido de carbono, num dia de seminário das 9h às 19h, na Faculdade de Engenharia, em Coimbra. “A partir da concentração de CO2 que eu tenho em cada momento, tenho uma noção de qual é a qualidade do ar expectável naquele espaço”, explica o professor.
E, então, como se purifica o ar? “Há várias estratégias: de forma química, por radiação ou ionização.” Depois detalha. Por um lado, “removemos ou atenuamos as fontes de carga viral, que é o que fazemos quando usamos máscara”. Por outro, “fazemos exaustão localizada quando sabemos que temos uma fonte forte e conhecemos a localização”, que é o caso do exaustor na cozinha. Depois, “podemos fazer diluição com ar novo”, para tentar baixar a concentração de poluente. Por fim, “podemos fazer a filtragem ou purificação do ar, tentando tirar os elementos poluentes”. Neste momento, o que o consórcio constituído em maio de 2020 está a fazer é precisamente estudar “entre as várias estratégias possíveis”, para “escolher aquela que representará o melhor compromisso de eficiência e custo”, detalha Gameiro.
Abílio Cardoso completa o raciocínio do docente-investigador: “E dentro da lógica e oportunidade comercial”. Gameiro completa o raciocínio. “O dispositivo recolhe o ar, processa-o e fá-lo sair mais limpo, provocando uma corrente de recirculação. Esta corrente vai depender dos caudais e dos valores com que estivermos a trabalhar.”
Neste momento estão a fazer os estudos de qual é o nível de penetração que conseguem que se tenha de dentro dos “habitáculos”, ou seja uma simulação dos espaços dos veículos, dependendo das respectivas dimensões. Em função desses resultados é que vão perceber quais devem ser as características do equipamento. Por agora, o protótipo teste não tem um design definido sequer. E a ideia é perceber, ainda, “quantos equipamentos serão necessários para ter um bom varrimento” em cada veículo, indica Cardoso.
Até final de janeiro terão resultados mais sólidos para apresentar, embora os cálculos já feitos e as suspeitas indiquem resultados promissores para a validação da prova de conceito. Gameiro adverte, no entanto, para um “pormenor” sobre a eficiência de 90% na primeira passagem de purificação do ar, com base na dose de exposição ao vírus. “Para isto ser benéfico não tem que, necessariamente, garantir, os 100% dos vírus que existem, porque se tiver uma capacidade importante de purificação já é um ganho significativo”.
Cardoso concorda e reflete sobre o possível impacto do CVS, defendendo que vai permitir diminuir o risco de contágio. “Temos consciência que a fase Covid, provavelmente com a entrada de vacinas, vai criar outro tipo de expectativas aos utilizadores de transportes públicos, mas acreditamos que este produto possa ser uma mais-valia não só na fronteira do transporte público, mas também na fronteira do transporte partilhado, criando maior conforto e tranquilidade”.
Este artigo faz parte de uma série sobre o trabalho levado a cabo pelo Parlamento Europeu e é uma parceria entre o Observador e esta instituição.