Francisca Van Dunem vai enviar para o Parlamento Europeu (PE) toda a documentação do Conselho da União Europeia (UE) relacionada com a nomeação do procurador José Guerra e dos seus colegas belga e búlgaro para o colégio da Procuradoria Europeia. Os eurodeputados do Partido Popular Europeu (PPE), do Renew Europe (liberais) e d’Os Verdes reclamavam o envio dessa documentação e, poucos minutos antes de Van Dunem aceder a enviar a documentação, a eurodeputada Sophia Veld até propôs o recurso aos tribunais para aceder à mesma.

Apesar dessa ter sido a principal conclusão da reunião conjunta entre as comissões do Controlo Orçamental (também conhecida por CONT) e das Liberdades e Garantias (igualmente conhecida por LIBÉ), a sessão no PE ficou marcada pelas críticas dos vários deputados do PPE, do Renew Europe e d’Os Verdes não só à forma como o Governo de António Costa não seguiu a escolha do comité independente de seleção (a procuradora Ana Carla Almeida), como afetou a transparência do processo ao dar informação falsa (entretanto corrigida) ao Conselho para justificar a escolha de José Guerra.

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Falando na dupla condição de presidente do Conselho da UE da Justiça em exercício de funções, Francisca Van Dunem deu as justificações já conhecidas sobre a opção por José Guerra: o parecer do comité de seleção não é vinculativo e a escolha de Guerra foi feita por um órgão independente do Governo — o Conselho Superior do Ministério Público.

Já a procuradora-geral Laura Kovesi recusou-se a comentar o caso de José Guerra, com quem está a trabalhar no Luxemburgo desde setembro do ano passado, por nada ter a ver com a nomeação dos procuradores europeus. O poder de nomeação pertence ao Conselho da UE — um órgão político que reúne os governos dos 27 Estados-membros.

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A reunião conjunta da CONT e da LIBÉ tinha como objetivo fazer o ponto da situação da Procuradoria Europeia, o novo órgão jurisdicional da União Europeia que deve entrar em funções até março. Van Dunem teve a companhia do comissário Didier Reynders (Justiça) e da procuradora-geral europeia Laura Kovesi — tendo todos participado à distância numa reunião que foi liderada pela alemã Monika Hohlmeier (presidente da CONT) e pelo espanhol López Aguilar (presidente da LIBÉ).

O caso de José Guerra foi logo abordado na primeira questão colocada por um deputado do PPE à procuradora-geral Laura Kovesi mas só após uma primeira intervenção de Francisca Van Dunem sobre o tema geral da entrada em funções da Procuradoria Europeia é que o assunto dominou a sessão.

Apenas o grupo parlamentar dos Socialistas & Democratas, nomeadamente as eurodeputadas portuguesa Isabel Santos e a espanhola Isabel Garcia Muñoz, defendeu a posição do Governo português.

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Paulo Rangel (PPE), Sophia In´t Veld (Renew Europe, liberais), Daniel Freund (Os Verdes), Laura Ferrara (deputada não inscrita) e outros deputados questionaram diretamente Van Dunem sobre as razões para não ter seguido o parecer do comité de seleção do Conselho — uma decisão que “ensombra o início da Presidência portuguesa pela falta de explicações”, disse Rangel.

Veld exigiu igualmente explicações sobre o caso da Bélgica e da Bulgária, dois países que também impuseram  as suas escolhas políticas ao Conselho, e a divulgação de toda a documentação do Conselho sobre esta matéria. “O Parlamento Europeu não vai recuar. Em última instância, se não conseguirmos estes documentos, não podemos excluir a possibilidade de aceder aos mesmos por via judicial. É crucial que a Procuradoria Europeia funcione com transparência e esta sombra tem de ser dissipada”, disse a deputada holandesa.

Até Monika Hohlmeier, presidente da CONT, se juntou a Sophia In´t Veld. “É importante que o Conselho entregue ao Parlamento Europeu toda a informação transparente sobre os candidatos. Nós já o pedimos e está em causa o respeito sobre o trabalho dos parlamentares”, disse.

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Na sua resposta, Francisca Van Dunem repetiu os argumentos essenciais que já tinha dito na Assembleia da República a 7 de janeiro. Afastando-se das teorias conspirativas contra a presidência portuguesa e de argumentos nacionalistas propalados na semana passada pela eurodeputada Isabel dos Santos, Van Dunem começou por classificar as dúvidas dos deputados do PE como “legítimas”.

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Recordando que não é costume em Portugal fazer concursos para escolher candidatos a cargos internacionais, a ministra da Justiça disse que o Governo tinha delegado a realização de tal concurso nos órgãos de gestão da magistratura judicial e do Ministério Público (MP) por estes serem “independentes do poder político” e por estarem em melhores condições para “escolher os candidatos para a Procuradoria Europeia”.

Por outro lado, Francisca Van Dunem enfatizou que o curriculum vitae de José Guerra, que sempre esteve na posse do Conselho, “não tem nenhum erro, nenhuma falha e nenhum lapso. É absolutamente rigoroso. Não se lhe pode apontar nada”. O que está em causa, reconheceu, são dois lapsos “numa nota que o Governo português enviou ao Conselho a dar nota da sua preferência por um candidato diferente daquele que tinha sido colocado em primeiro lugar pelo comité de seleção”, disse.

E que tais lapsos foram corrigidos a 4 de janeiro deste ano pela própria Francisca Van Dunem em carta dirigida ao Conselho da UE — que, segundo a ministra, aceitou as mesmas correções e “deu-me nota de que a avaliação que foi feita dos candidatos esses dois elementos (os lapsos) não foram sequer valorados. O candidato foi valorado pelo seu curriculum” e não pela sua categoria ou pela sua participação no caso da UGT — os dois lapsos em causa.

“Porque é que Portugal fez uma escolha diferente?”, questionou. Em primeiro lugar, porque o parecer do comité de seleção não é vinculativo. Por outro lado, continuou Van Dunem, “porque havia uma diferença abissal entre a seleção feita pelo Conselho Superior da MP e a do comité de seleção. A candidata que o comité de seleção colocou em primeiro lugar ficou em terceiro lugar na seleção feita em Portugal, ficou a 12 pontos do candidato que ficou em primeiro lugar. O Conselho do MP tem legitimidade democrática e a escolha teve o acordo do Parlamento”, disse.

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Por último, Francisca Van Dunem disse em nome do Conselho da UE que este órgão “está disponível para, com as limitações relacionadas com a problemática do acesso aos documentos e dos dados pessoais, fornecer toda a informação que o Parlamento Europeu considere necessária”.

A ministra da Justiça terminou a sua intervenção com um apelo: “estamos desde outubro nesta situação. A Procuradoria Europeia precisa de estabilidade, de paz. Se queremos operacionalizar a Procuradoria Europeia, precisamos de resolver este problema com grande rapidez e não eternizar um problema”

Sophia Veld pediu de imediato a palavra para pedir à mesa das duas comissões para solicitar formalmente o acesso a toda a documentação relacionada com os três casos sob escrutínio: Portugal, Bélgica e Bulgária. “Se não obtivermos por esta via, teremos de tentar aceder aos mesmos por via judicial”, insistiu.

Paulo Rangel constatou que Van Dunem “não respondeu sobre se acha que o painel de seleção é ou não é independente, não respondeu sobre se deu instruções para escolher um candidato primeiro e outro depois. E acabou de admitir que havia um quarto candidato que teria ganho o concurso se não tivesse sido excluído.”

Procuradoria Europeia pode não começar a trabalhar em março

O caso do procurador José Guerra foi precisamente o primeiro tema a ser abordado pelos eurodeputados depois de uma intervenção inicial da procuradora-geral Laura Kovesi. Demonstrando que o PPE não pretende desistir do caso, o holandês Jeroen Lenaers (PPE) começou por questionar Kovesi sobre a matéria. “Tendo em conta que nomeação do Conselho se baseou em informação falsa e que a credibilidade do procurador português, logo da Procuradoria Europeia, pode estar em risco, o que pensa sobre este tema, tendo em conta a defesa da imagem da Procuradoria Europeia e do principio da transparência?”, questionou.

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Perguntas idênticas foram feitas pelo deputado romeno Dragos Tudorache (Renew Europe) e pela belga Saskia Bricmont (Os Verdes) mas todas elas foram ‘chutadas para canto’ por Laura Kovesi.

“Como não estive envolvida no processo, não posso comentar. Apenas posso dizer que a independência da Procuradoria Europeia é muito importante. O meu trabalho é ter a certeza de que todos os procuradores europeus que estão colégio e de que todos os procuradores delegados agirão de forma independente e de que não receberão qualquer indicação de qualquer autoridade nacional ou seja de quem for. Eu tomarei conta deste assunto e farei tudo para que todos na Procuradoria Europeia sejam independentes e profissionais”, afirmou.

Recorde-se que Laura Kovesi, conhecida por liderar investigações importantes contra a corrupção na Roménia até ser demitida em 2018 pelo seu Governo, foi escolhida pelo Conselho depois do Executivo do seu país se ter oposto à sua escolha. Kovesi é apoiada pela generalidade dos grupos parlamentares do PE.

O Comissário Didier Reynders também recusou comentar as escolhas do Conselho da UE por a Comissão Europeia não ter sido chamada a participar no processo. “Compete ao Conselho verificar se há alguma irregularidade em alguma nomeação”, disse o titular da pasta da Justiça na Comissão Europeia.

Presidente da Comissão de Controlo Orçamentar insta Portugal a retirar José Guerra

Ainda a ministra da Justiça estava dar explicações na reunião conjunta das comissões do Controlo Orçamental e das Liberdades e Garantias já havia pedidos para que Portugal substituísse o procurador José Guerra por outro magistrado nacional na Procuradoria Europeia.

O pedido, ainda por cima, não vem de um eurodeputado qualquer. Vem da alemã Monika Hohlmeier, presidente da Comissão de Controlo Orçamental que convidou Francisca Van Dunem a participar nesta reunião.

Num tweet publicado às 14h08m, quando os deputados das diferentes bancadas começaram a questionar diretamente Francisca Van Dunem sobre a polémica nomeação de José Guerra, a eurodeputada do PPE instou o Governo português a “retirar o seu procurador”. “A Procuradoria Europeia e os seus procuradores têm de ser independentes e credíveis. O Governo português apresentou informação falsa do seu candidato e desrespeitou a escolha do painel europeu de seleção. Portugal tem de retirar o seu procurador. É necessária transparência”, lê-se no tweet da líder da Comissão CONT — uma das mais importantes do Parlamento Europeu.

Durante a reunião, Monika Hohlmeier não fez o mesmo pedido a Francisca Van Dunem mas fez questão de participar no debate, depois da ministra da Justiça já ter respondido pela segunda vez aos deputados. Hohlmeier levantou a questão de um possível conflito de interesses no qual Van Dunem teria incorrido. Isto porque, na ótica da presidente da CONT, a ministra portuguesa estava a falar como presidente do Conselho da União Europeia e, ao mesmo tempo, a “explicar algo que tem a ver com o comportamento do seu próprio Governo”.

Duma coisa Hohlmeier não tem qualquer dúvida: a polémica em redor de José Guerra “vai impactar na credibilidade da Procuradoria Europeia. É algo que não podemos desvalorizar, tendo em conta o excelente trabalho que a sra. Kovesi tem feito” e “o Conselho é o grande responsável por isso”.

Tendo em conta que a Procuradoria Europeia tem um mandato para investigar crimes contra os interesses financeiros da União Europeia, a comissão CONT tem jurisdição parlamentar para escrutinar os trabalhos deste novo organismo que deve começar a operar a partir de março.

Ameaçada entrada em funções da Procuradoria Europeia em Março

A sessão parlamentar iniciou-se com uma intervenção de Laura Kovesi sobre o ponto da situação da Procurdoria Europeia — organismo que ainda está em fase de instalação e que deve começar a operar a partir de março.

Por exemplo, a procuradora-geral revelou que as mudanças para a sede para o Luxemburo ainda estão a decorrer, depois dos magistrados que fazem parte do colégio da Procuradoria Europeia, como José Guerra, terem tomado posse em setembro de 2020.

Desde aí foram aprovados uma série de regulamentos internos e contratado pessoal de apoio mas ainda persistem vários obstáculos que poderão impedir o início de funções em março. Desde logo, o atraso na constituição das procuradorias delegadas que funcionarão em cada um dos 22 Estados-membros e que, na prática, serão os titulares dos inquéritos e dos processos sob a competência da Procuradoria Europeia.

Segundo revelou Laura Kovesi, apenas foram nomeados 18 procuradores delegados em quatro Estados-membros. O objetivo é contratar um total de 114 procuradores delegados. Uma das razões para o atraso, acrescentou Kovesi, é o facto de existir falta de acordo entre a Procuradoria Europeia e os diversos governos dos Estados-membros sobre o número dos procuradores delegados por país.

Em Portugal, o processo também ainda não está concluído. Mas já se sabe os procuradores delegados vão funcionar em duas cidades (Lisboa e Porto) em instalações disponibilizadas pelo Ministério da Justiça.

As “mentiras” do Governo Costa, a “irritação” com os discursos nacionalistas “ridículos” e o combate à corrupção

Como o eurodeputado Daniel Freund (Os Verdes) afirmou em entrevista ao Observador, o processo de constituição da Procuradoria Europeia “começou com o pé esquerdo.” Por exemplo, “a Comissão Europeia calculou em cerca de 800 processos por ano com os quais [a Procuradoria Europeia] teria de lidar. Agora, que a procuradora-geral europeia tomou posse, os Estados-membros já sinalizaram mais de 3.000 processos. O trabalho será quatro vezes superior ao que foi inicialmente estimado”, disse Freund.

Laura Kovesi confirmou estes dados e disse aos eurodeputados da CONT e da LIBÉ que necessitava de mais “pessoal qualificado” para coadjuvar os magistrados e “de um aumento de orçamento, tendo em conta o aumento de números processos nos 22 estados-membros”.

Na sua intervenção inicial, Francisca Van Dunem disse em nome do Conselho que este órgão político “tem feito tudo no limite das suas capacidades para que a Procuradoria Europeia entre em funções o mais rapidamente possível” — até porque os Estados-membros vão começar em breve a receber os fundos de reconstrução, para combater os efeitos económicos da crise pandémica.

Van Dunem disse também que Portugal, enquanto detentor da presidência do Conselho até junho, enviou um questionário para todos 22 Estados-membros no dia 13 de janeiro com o objetivo de fazer um ponto da situação sobre três temas:

  • “a nomeação dos procuradores delegados e o trabalho que estes vão fazer” — “queremos saber quais são as dificuldades”;
  • “se foram disponibilizados os meios e as instalações para o bom funcionamento das delegações da Procuradoria Europeia”;
  • “e, finalmente, se há algum facto que impeça a entrada em funcionamento da Procuradoria Europeia em Março de 2021.”

A presidência do Conselho espera uma resposta dos Estados-membros até ao dia 1 de fevereiro.