O Governo, representado por uma secretária de Estado que insistiu na tese dos lapsos; dois socráticos e eurodeputados socialistas a defenderem a independência do Conselho Superior do Ministério Público; e três dos cinco maiores partidos do Parlamento Europeu a censurarem com palavras duras a forma com o Executivo de António Costa escolheu o procurador José Guerra como o representante português da Procuradoria Europeia — eis uma descrição sumária do debate do final de tarde desta quarta-feira que ocorreu no Parlamento Europeu (PE).

Pelo meio, o vice-presidente que liderava a mesa foi obrigado a tirar a palavra à eurodeputada Isabel dos Santos por ter excedido o seu tempo para falar. Durante alguns segundos, uma batalha verbal em língua alemã e portuguesa ecoou pelo plenário.

A sessão parlamentar suscitada pelos liberais do Renew Europa, com o apoio do Partido Popular Europeu (PPE), tinha um título elucidativo (“falta de transparência nas nomeações do Conselho [da União Europeia] para a Procuradoria Europeia”) e dos 12 eurodeputados inscritos, oito teceram fortes críticas ao processo decidido pelo Conselho. Tudo porque Portugal, Bélgica e Bulgária não respeitaram a escolha dos candidatos selecionados por um comité independente formado por juízes conselheiros e professores de Direito e impuseram os seus nomes ao órgão político da UE.

Nomeação de José Guerra contestada por metade do Parlamento Europeu

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Na prática, o processo é criticado por três grupos parlamentares que representam praticamente metade do Parlamento Europeu (352 em 705 deputados).

“O Governo português mentiu e corrompeu o Estado de Direito”

Apesar de terem sido três os países a interferir politicamente nas escolhas do representante nacional para a Procuradoria Europeia, o caso de Portugal marcou a sessão do Parlamento Europeu dedicado à “falta de transparência do processo de nomeação” dos magistrados que fazem parte do colégio da Procuradoria Europeia.

Gonzales Pons (do PPE) abriu as hostilidades. Aludindo à proximidade cultural e histórica que sente com Portugal, o eurodeputado espanhol acusou o Governo de António Costa de “mentir” ao Conselho da UE “sobre as qualificações” de José Guerra — uma alusão aos factos falsos comunicados pelo Ministério da Justiça sobre a categoria profissional do magistrado e a sua participação na investigação ao maior caso de fraude de fundos europeus dos anos 90 (o caso UGT). E, “por causa dessa mentira, tomou-se uma decisão que não devia ter sido tomada”: a nomeação de Guerra para a Procuradoria Europeia.

Daí o valenciano instar o Governo português a “assumir as suas responsabilidades”. “A Procuradoria Europeia ficou com a sombra da suspeita. As mentiras devem acarretar consequências e corromper o Estado de Direito não pode ficar impune”, disse.

Pons endereçou mesmo uma crítica direta a António Costa por o primeiro-ministro ter acusado o eurodeputado Paulo Rangel (colega de Pons no PPE) e o ex-ministro Miguel Poiares Maduro de liderarem “uma campanha internacional contra Portugal”. “Não sei o que é pior: se os erros administrativos, se a qualificação anti-portuguesa” feita por Costa. “Este tipo de disparates são próprios de outras latitudes” e dão uma imagem errada de Portugal, censurou Pons.

A eurodeputada socrática, os 900 anos de história e o silêncio

Seguiu-se Isabel Santos, do Grupo Socialistas & Democratas. Conhecida por ser uma fervorosa apoiante de José Sócrates, a eurodeputada eleita pelo PS fez um discurso patriótico e nacionalista. “Aqui sou mais do que eu e ergo-me do alto de quase 900 anos de história para responder ao deputado Pons — atrás do qual se escondem os verdadeiros urdidores desta verdadeira campanha de desinformação, cujo único objetivo é atingir a presidência portuguesa do Conselho e, por arrasto, atingir a própria Procuradoria Europeia”, afirmou, recuperando as críticas de António Costa dirigidas a Rangel e a Poiares Maduro.

Isabel Santos acabou por repetir os argumentos do Governo, defendendo que a ministra Francisca Van Dunem se limitou a seguir a escolha do Conselho Superior do Ministério Público — o órgão de gestão do Ministério Público que classificou de “órgão independente”.

O problema veio a seguir. A eurodeputada socialista começou-se a atrapalhar na sua comunicação ao dizer que a “comunicação do Conselho é clara: diz que o candidato apontado obteve a mais alta classificação… do alto… do ranking do Conselho da… Procuradoria… Pública…”, sendo imediatamente interrompida pelo presidente da mesa, o alemão Rainer Wieland. É que todos os eurodeputados tinham apenas um minuto para falar — um tempo normal nas intervenções no PE devido ao elevado número de deputados — e a socialista já tinha excedido o tempo.

Mas Isabel Santos fingiu que não ouviu e, além de fazer um sinal brusco com o braço, tentou prosseguir. “Peço desculpa. Do Conselho Superior do Ministério Público”, disse.

Mas Rainer Wieland não cedeu. Conhecido por ser inflexível a gerir os tempos dos eurodeputados de todas as bancadas, inclusive da sua (o PPE), não deixou a eurodeputada portuguesa continuar e começou a falar por cima. Iniciou-se uma cacofonia germânico-portuguesa que durou alguns segundos.

— “Ultrapassou o tempo”, dizia Wieland em alemão.

— “Não houve interferência política”, tentava Isabel Santos continuar em português. Mas essas foram mesmo as suas últimas palavras.

Rainer Wieland não teve contemplações e retirou-lhe a palavra. “Isto é inadmissível!” Com o microfone desligado, as últimas sílabas de Isabel Santos não foram sequer ouvidas no plenário.

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Mais tarde, Pedro Silva Pereira foi mais eficaz na sua intervenção, refutando todas as críticas que foram dirigidas à escolha do Governo português. “O parecer do comité de seleção não é vinculativo e também não foi seguido no caso de outros países. Hoje está esclarecido que o procurador português não foi escolhido pelo Governo mas sim por um órgão independente [o Conselho Superior do Ministério Público]” e “o currículo do procurador nomeado não tinha erros”. “Se fosse isto uma batalha naval, diria que foram três tiros na água. Porque isto não passa de um caso artificial”, concluiu o ex-braço direito de José Sócrates entre 2005 e 2011 no Governo.

Bloco com crítica tímida e PCP aceita escolha

Os eurodeputados que se seguiram não recuperam o tom de Gonzales Pons mas mantiveram as críticas. Sophie Veldt e Dragos Tudorache (Renew Europa) censuraram o Governo português pela forma como geriu o processo de nomeação de José Guerra. “Não há razão nenhuma para que o Conselho não tenha seguido a recomendação do painel de especialistas. Será que foi para criar emprego para os amigos?”, perguntou a eurodeputada holandesa.

Sophie Veldt disse igualmente estar chocada com as declarações de Isabel Santos e comparou a sua posição às teses conspirativas de Donald Trump. “Hoje mesmo, um Presidente que durante quatro anos considerou todas as críticas como uma conspiração contra si deixou a Casa Branca. Podemos por favor deixar de seguir o seu exemplo?”, disse.

Jeroen Lenaers (PPE) afirmou que “o Governo português deu prioridade às preferências políticas do que ao combate à fraude, preferiu enviar o seu ‘Yes Man’ para o Luxemburgo”, país onde está a Procuradoria Europeia tem sede.

E Daniel Freund (Os Verdes) disse que a “Bélgica, Bulgária e o seu próprio Governo [dirigindo-se à secretária de Estado Ana Paula Zacarias] interferiram politicamente na nomeação dos seus representantes”. “A Bélgica nomeou um membro do gabinete do ministro. Portugal forneceu informações falsas. Em vez de nomearem a melhor pessoa para o cargo. Nós temos que ter uma Procuradoria Europeia com pessoas competentes para levar a cabo a sua missão”, afirmou.

Já os eurodeputados Sandra Pereira (CDU) e José Gusmão (Bloco de Esquerda) fizeram críticas suaves, defendendo o direito do Governo a seguir a seleção feita pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP)

Sandra Pereira disse mesmo que reconhece “a maior competência” ao CSMP “para indicar o procurador que representará Portugal”. Contudo, acrescentou que “este processo está marcado por discrepâncias entre documentos do Governo português e o que está indicado no currículo do candidato. Importa saber em que documentação o Conselho se baseou para nomear José Guerra”. “Mas não contem connosco para empolar uma situação que tem por detrás uma agenda política”, sentenciou.

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Já José Gusmão classificou o procedimento do Ministério da Justiça como “adequado”. Mas foi mais longe do que Sandra Pereira e disse que ocorreu uma “trapalhada grave” com “a prestação de informações falsas sobre o currículo desse candidato”. Porém, e tendo em conta que o ex-diretor-geral de Política de Justiça se demitiu devido a esses erros e a ministra Francisca Van Dunem assumiu a “responsabilidade política” por não ter verificado a informação em causa, o eurodeputado do Bloco entende que o caso deve ficar por aí.

Gusmão criticou ainda o PPE por estar preocupado com o Estado de Direito mas não ligar aos representantes do Fidesz, o partido de Viktor Orban que faz parte do PPE, e ainda censurou o PSD e o CDS por fazerem “alianças em Portugal com os partidos da extrema-direita”.

Ana Paula Zacarias: “Os lapsos foram lamentáveis” mas “estão esclarecidos”

A conclusão do debate foi feita por Ana Paula Zacarias, secretária de Estado dos Assuntos Europeus de António Costa. Fazendo questão de afirmar que estava ali na posição de representante do Conselho da UE (por Portugal estar exercer a presidência do órgão político da União), Zacarias não deixou, porém, de repetir os argumentos de sempre do Governo português.

Começou por refutar “qualquer interferência política” do Executivo do PS porque a “designação dos candidatos portugueses baseou-se num parecer” do CSMP — um órgão que classificou como “órgão judicial independente”. “Este Conselho atribuiu a maior classificação ao procurador José Guerra. A nomeação foi independente”, enfatizou.

E repetiu o argumento jurídico de que “a ordem de seleção do comité de seleção não vincula o Conselho [da UE]”. Daí o Governo português ter informado por carta de 29 de novembro de 2019 que preferia manter seguir a escolha do CSMP.

Miguel Romão. “Caso UGT foi relembrado pela ministra Francisca Van Dunem”

“Infelizmente, a carta contém dois lapsos”, lamentou. E que dois lapsos foram esses? Informou-se erradamente que o procurador José Guerra tinha participado na investigação do caso UGT, o maior caso de fraude de fundos europeus nos anos 90, e “usou-se o título de cortesia de procurador-geral adjunto, embora seja na realidade procurador da República”.

Contudo, enfatizou Zacarias, “o Conselho avaliou a experiência do procurador José Guerra não pela sua categoria profissional” (ou pela participação no caso UGT) mas sim com “base na sua experiência de mais de três décadas de magistrado do MP e de 12 anos no Eurojust em diversas funções”.

Seja como for, “estes lapsos foram esclarecidos numa carta dirigida pela ministra da Justiça ao Conselho a 4 de janeiro de 2021”. E, “embora lamentáveis, não influenciaram a apreciação do Conselho sobre os méritos e as habilitações profissionais dos candidatos portugueses — facto que resulta evidente das cartas enviadas aos candidatos não selecionados”, concluiu.

“Portugal tem um compromisso total com a transparência da Procuradoria Europeia. É do interesse de todos que seja um gabinete sólido e credível”, disse Ana Paula Zacarias.

Espera-se que a Procuradoria Europeia, que está em fase de instalação, comece a operar a partir de março de 2021.

Acrescentadas declarações da eurodeputada Sophie Veldt às 11h05 de dia 21 de janeiro de 2021