O marido e dois tios da presidente da Junta de Freguesia de Reguengo Grande foram vacinados com doses que sobraram do Centro Paroquial e Social desta freguesia, no concelho da Lourinhã. Ana Isabel Barros, que trabalha nesse lar, garante que não indicou o nome dos tios, mas reconhece que sugeriu o nome do marido à enfermeira do SNS, por ter doença crónica. Confrontada pelo Observador, confessa estar arrependida.

Quando terminou a vacinação prevista no lar de Reguengo Grande, que incluiu 24 utentes e 43 profissionais, sobravam quatro doses, por diferentes motivos, levantando-se a questão do que fazer com elas. Num dos casos, a vacina foi administrada numa enfermeira do Centro de Saúde, que estava a participar no processo de vacinação. Outras duas pessoas “foram indicadas pela enfermeira”, garante Ana Isabel Barros, apesar de serem familiares seus. “E a outra fui eu que sugeri, o meu marido, por ter doença crónica, de foro respiratório — com tratamento de ventiloterapia diária”.

Ana Isabel Barros garante que não indicou os tios, mas reconhece que deu o nome do marido

A enfermeira “perguntou a quem lá estava naquela altura se indicavam alguns nomes, e, não havendo nomes a indicar, ela própria indicou dois utentes”, garante Ana Isabel Barros. Só que os dois utentes são seus tios: “São meus familiares, por mero acaso, é uma terra pequena, portanto, é normal”. E porquê estas duas pessoas? “Tem de perguntar à senhora enfermeira, não fui eu que os escolhi, não os indiquei nem os sugeri”. Ana Isabel Barros adianta que ambos têm idades a rondar os 90 anos.

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O outro caso é, no entanto, diferente. “Sobrando uma, sabendo que o marido tinha doença crónica — um dos requisitos que ela dizia ser necessário ter — indiquei-o”. Ana Isabel Barros garante que tudo se passou perante a pressão de não desperdiçar as vacinas, porque “tinham de ser utilizadas num curto espaço de tempo” em utentes do Reguengo Grande “que preenchessem os requisitos da DGS”.

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Questionada pelo Observador se considera que esta vacinação foi irregular, Ana Isabel Barros responde que não, “uma vez que as vacinas iam ser desperdiçadas, porque sendo a vacina aberta naquela altura ou eram usada ou ia para o lixo”. Além disso, “tudo foi validado pelo SNS”, garante, uma vez que a decisão foi tomada pela enfermeira do Centro de Saúde, que “ligou para a chefe”.

Não foi a instituição que escolheu as pessoas, nem fui eu que escolhi as pessoas, foi a unidade de Saúde que coordenou todo o processo”, sublinha Ana Isabel Barros.

Ana Isabel Barros garante que a enfermeira do SNS coordenou a decisão com as hierarquias

Porém, a presidente da junta admite que há um problema ético na decisão que tomou ao sugerir o nome do marido: “Sim, é verdade”, reconhece a presidente da junta. “Se fosse hoje não a tomaria [a decisão], mas naquele momento, na pressão da pergunta e de tudo o que tinha sido, foi um ato impensável e sugeri [o meu marido]. Se fosse hoje, certamente não o faria. Mas está feito, não se pode voltar atrás”. E teme consequências dessa decisão? “Estou cá para arcar seja com o que for”.

Ana Isabel Barros mostra-se arrependida por ter indicado o marido

“A funcionária poderá ter misturado um bocadinho os seus papéis”

Confrontado com esta notícia, o padre Pedro Tavares, que lidera o Centro Paroquial e Social de Reguengo Grande desde setembro, garante que a direção do lar só há alguns dias teve conhecimento que houve pessoas externas a receber vacina. E adianta que, neste momento, o caso está a ser avaliado internamente.

Estamos num tempo difícil e não nos podemos armar todos em patrões e acharmos que todos nós podemos fazer como nós achamos”, considera o padre. “Penso que aqui a funcionária poderá ter misturado um bocadinho os seus papéis”.

O padre Pedro Tavares, que gere o lar, entende que Ana Isabel Barros misturou as duas funções que desempenha

“A funcionária em questão, administrativa, não tinha autoridade para agir em nome da instituição. Portanto, a instituição aqui não tem nada a ver com aquelas quatro vacinas que sobraram. Coube depois à enfermeira responsável pela administração da vacina, e com os seus superiores hierárquicos do Centro de Saúde da Lourinhã, perceberem quem é que devia ou não ser vacinado”, diz o padre ao Observador. “Estas vacinações extraordinárias não foram da responsabilidade do Centro Social”.

O padre Pedro Tavares esclarece que Ana Isabel Barros não tinha autoridade para indicar nomes

“A questão foi colocada à diretora técnica da instituição, que respondeu que não tinha mais utentes para vacinar. E a mesma questão foi colocada depois à funcionária administrativa, que acumula também o cargo de presidente da Junta de Freguesia da localidade”, esclarece Pedro Tavares.

O padre, que diz basear-se nas informações da diretora técnica do lar, não sabe se as pessoas externas que tomaram a vacina fazem ou não parte de grupos de risco. “Essa questão já me ultrapassa, porque essa gestão não foi feita por nós”, mas pelo SNS.

As quatro vacinas sobraram por diferentes motivos, de acordo com o padre Pedro Tavares: chegou uma dose a mais do SNS; uma funcionária faltou; havia ainda uma utente que estava internada e não chegou a tempo do processo de vacinação; e uma enfermeira da instituição que tinha tido Covid-19 há pouco tempo não preenchia os requisitos para ser vacinada.

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