Hesita um segundo antes de dizer a idade. Não é embaraço, mas uma incerteza momentânea. “Tive de parar para pensar porque ainda me imagino com 30 e tal anos”, justifica. Na verdade tem 41, metade deles passados na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa.
Foi com 18 anos que Rui Eduardo Castro voou do Funchal para a capital para estudar Biologia Microbiana e Genética na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, “entusiasmado por vir para um mundo muito maior do que aquele que conhecia”. No fim do curso, em 2001, foi o acaso que o conduziu à Faculdade de Farmácia. Ia a caminho de casa, em Entrecampos, e cruzou-se com dois colegas de turma, junto à Torre do Tombo, na Alameda da Cidade Universitária. “Iam à Faculdade de Farmácia ver uma vaga para o estágio de final de curso e eu acabei por ir também. Eles não ficaram nada interessados no lugar. Eu fiquei.” Conseguiu a posição e já daqui não saiu.
Começou como estudante, hoje é professor. Teve várias posições de investigação, hoje tem o seu próprio laboratório. Foi o ano passado, animado pela conquista de financiamento de 500 mil euros através do concurso Health Research, da Fundação “la Caixa”, que decidiu dar esse passo de ser comandante do seu próprio barco. “É entusiasmante, mas ao mesmo tempo um pouco assustador”. Afinal, graças a um projeto de combate à obesidade para tratar a doença do fígado gordo, agora é responsável pelo financiamento do seu próprio grupo que, apesar de ainda não ter um ano, conta já com quatro elementos.
No laboratório de Rui Castro, alguns dos ratinhos fazem uma alimentação especial. O investigador chama-lhe dieta fast-food: a água é suplementada com glucose e frutose, para simular os refrigerantes, e a comida tem muitas gorduras saturadas, como acontece com os hambúrgueres. Em pouco tempo, acontece-lhes o mesmo que aos seres humanos que fazem esta dieta: desenvolvem obesidade e fígado gordo não-alcoólico (FGNA) – e são estas duas condições, e a relação entre elas, que Rui Castro se tem dedicado a estudar.
O conjunto de transformações que as substâncias químicas sofrem dentro do nosso corpo – o metabolismo – é responsável por transformar os alimentos em energia para as células. A obesidade parte do desequilíbrio energético: ingere-se mais energia do que aquela que se gasta. Apesar disso, não se trata de uma conta matemática simples e igual para toda a gente. “Há perfis metabólicos distintos, determinados por características genéticas e ambientais que fazem com que algumas pessoas tenham mais facilidade de metabolizar e excretar as gorduras”, explica o investigador.
Por outro lado, uma caloria não é apenas uma caloria. Apesar de o valor energético da caloria ser igual, provenha ela de uma alface ou de uma batata frita, a forma como o corpo a metaboliza é diferente.
A questão não é só o total de calorias, mas de onde elas vêm. Há particularidades que estão relacionadas com a estrutura e metabolização das moléculas. Sabe-se, por exemplo, que a frutose é um dos piores tipos de açúcar porque impede a ‘queima de gordura’, ao mesmo tempo que induz a sua acumulação.”
Os pequenos desequilíbrios não têm de ser graves. No princípio, aliás, nunca são. Uns deslizes na dieta, umas baldas ao ginásio, e o ponteiro da balança sobe um pouco. Mas quando não se trava a tempo, o peso normal passa a excessivo. E, continuando pelo mesmo caminho, chega a obesidade – quando o Índice de Massa Corporal (IMC) ultrapassa os 30 Kg/m2. E isso já é potencialmente grave: a palavra “obesidade” não é apenas um peso excessivo, mas antes um peso que, potencialmente, tem um impacto negativo na saúde.
Mas a obesidade visível não é o verdadeiro problema. À medida que aumenta a massa adiposa – que se vê por fora – aumenta também aquilo que não se vê: o número e o volume das células adiposas dentro do corpo. São elas que provocam as doenças associadas à obesidade. E um dos órgãos que fica ‘gordo’ é o fígado. “A inatividade física e a alimentação desequilibrada, particularmente a ingestão de gorduras saturadas e bebidas açucaradas, como os refrigerantes, aumentam a gordura dentro das células, incluindo as células do fígado, acabando por dar origem ao fígado gordo não alcoólico (FGNA)”, explica Rui Castro.
“Inicialmente esta gordura não é muito prejudicial, mas, se se mantêm os fatores que levam à acumulação – nomeadamente os excessos alimentares –, ela vai progredindo: começa a haver inflamação, depois esteato-hepatite, fibrose, cirrose e, eventualmente cancro de fígado.” As estatísticas estimam que a doença já atinja cerca de 25% da população mundial, valor que sobe para os 30-40% em países industrializados, como os EUA.
Com este projeto de combate à obesidade para tratar o fígado gordo, Rui Castro está a estudar os mecanismos de desenvolvimento da doença, novas formas de diagnóstico e eventuais tratamentos, com a colaboração de Helena Cortez-Pinto, do Centro Hospitalar Lisboa Norte, e de três parceiros internacionais: Kristina Schoonjans, da Escola Politécnica Federal de Lausanne (Suíça), Jesús Bañales, do Biodonostia Biodonostia Health Research Institute e Maria Martinez-Chantar, do Centro de Investigación Cooperativa en Biociencias, ambos no País Basco (Espanha).
Em primeiro lugar, porém, o investigador madeirense quer perceber se o tecido adiposo comunica com o fígado explorando os exossomas – vesículas extracelulares em circulação no corpo que ajudam os órgãos a comunicar entre si e podem explicar o surgimento ou progressão da doença. Em segundo, quer perceber se estas vesículas ou o seu conteúdo, nomeadamente os microRNAs, podem funcionar como biomarcadores de diagnóstico não-invasivo – já que hoje os diferentes estadios só se determinam por biópsia hepática. Por fim, está a testar um fármaco capaz de ativar um recetor metabólico chave nas células adiposas – o recetor TGR5 –, potencialmente diminuindo a massa do tecido adiposo e induzindo respostas metabólicas globais que culminem na melhoria ou reversão do FGNA.
Estudar a obesidade não o tornou um fundamentalista da nutrição. Tenta comer de forma equilibrada e gosta “da nova tendência de alimentação saudável, com granola, sementes e aveia”, mas, excecionalmente, não se proíbe de pecar. “Com o novo confinamento, alguns dias alimento-me de pizzas e hambúrgueres”, confessa. A pandemia não lhe mudou só os desejos alimentares. No trabalho, desde há um ano, Rui tem mais uma responsabilidade todos os dias: avaliar os resultados dos testes PCR à Covid-19 feitos na faculdade ou enviados por lares e hospitais.
O confinamento também o tem reaproximado das tarefas de bancada. “Prefiro que os alunos de mestrado e doutoramento não venham, por causa das deslocações em transportes públicos. Como moro aqui ao lado, posso vir fazer a manutenção de algumas experiências. E gosto muito, faz-me lembrar a altura em que estava a fazer o doutoramento nos Estados Unidos e passava os fins-de-semana no laboratório.”
Tempos livres tem poucos, mas, quando os tem, gosta de estar com Seven e Otto, os seus cães-de-água portugueses. E, depois de uma breve hesitação, acaba por admitir um guilty pleasure: os videojogos de ação e aventura. “Não sei porque é que tenho vergonha de admitir, mas gosto desde sempre e não deixei de gostar com a idade. Ando a jogar The Last of Us. Relaxa-me jogar um pouco antes de ir dormir.”
Na altura de apontar alguém que o tenha inspirado, não menciona professores ou cientistas galardoados. Com alguma candura e afeto, refere a mãe. Aurélia tem boas razões para se sentir orgulhosa do filho, Rui também tem boas razões para se sentir orgulhoso da mãe. “Inspirou-me muito porque sempre me incentivou a ser quem sou, a fazer o que quero, a perseguir os meus sonhos.”
Por agora, o sonho é simples: “Quero só continuar a sentir que, em cada momento, estou sempre a fazer o meu melhor”.
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Targeting the Adipose Tissue to treat Fatty Liver: Role of TGR5 / Combater a Obesidade para Tratar a Doença do Fígado Gordo, liderado por Rui Eduardo Castro, da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa e do Instituto de Investigação do Medicamento da mesma instituição, foi um dos 25 selecionados (dez em Portugal) – entre 785 candidaturas – para financiamento pela Fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2018 do Concurso Health Research. O investigador recebeu 500 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O Health Research apoia projetos de investigação em saúde e as candidaturas para a edição de 2021 encerraram a 3 de dezembro último. Em meados deste ano deverão estar disponíveis as informações sobre as candidaturas para 2022.