O sol a despontar, em Lisboa, em manhã de cerimónia de entrega da prémios de inovação, da Imprensa Nacional Casa da Moeda. E um Presidente da República e um primeiro-ministro lado a lado, como é raro ver em circunstâncias do género. Cenário pacífico? Nem por isso, entre os dois  corre um momento delicado, no rescaldo de uma decisão que Marcelo tomou e que António Costa não queria, sobre o alargamento dos apoios sociais. Agora, o primeiro-ministro não se poupa ao que garante não ser ironia, mas que é, no mínimo, uma escolha de palavras com segundas e terceiras intenções, plena de recados, exceto um: desta vez (ao contrário do que aconteceu em 2019 com as carreiras dos professores) não há, nem vai haver, ameaça de demissão.

O primeiro-ministro garante que não está interessado numa crise política nesta altura e até cita o Presidente da República para alinhar perspetivas nesta matéria, mas não deixa de classificar de “inovadora”, “rica” e até “criativa” a mensagem com que o Presidente acompanhou, na tarde deste domingo, a promulgação do diploma aprovado na Assembleia da República por coligação negativa para o Governo, positiva para a oposição que conseguiu fazer passar — até em Belém, mesmo perante pressão do Governo — o reforço das ajudas aos profissionais da saúde, sócios-gerentes e trabalhadores independentes e os apoios aos pais em teletrabalho com filhos em casa que provocam uma despesa com que o Governo não contava.

O Governo argumentou com a lei travão — a norma constitucional que trava o Parlamento de aumentar despesa ou diminuir receita orçamental, para não desvirtuar o Orçamento do Estado — mas Marcelo entende que é possível acomodar essa despesa, cuja “incidência” diz ainda estar “em aberto”, com a execução mais ou menos flexível do Orçamento do Estado para este ano. Mas António Costa diz que, segundo o Presidente, “não há preto e branco. Não há normas que violem a lei-travão e normas que não violem e que o Governo aplicará a lei na estrita medida que está no Orçamento”.

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Já sobre a zona cinzenta presidencial, António Costa diz que ainda tem de refletir e “analisar profundamente” a decisão antes de decidir se envia ou não o diploma para fiscalização sucessiva da constitucionalidade, uma prerrogativa do primeiro-ministro, mas que tem o senão de não ter um prazo de decisão do Tribunal Constitucional, pelo que pode levar meses (ao contrário da fiscalização preventiva que o Presidente podia pedir e que tem de ter resposta em 25 dias). Ou abre guerra a Belém e ao Parlamento de uma assentada, ou estuda o tal encaixe orçamental que Marcelo alega ser possível.

“Não há tempo para crises políticas nem absurdos do género”

Uma coisa ficou, no entanto, certa. Não vai acontecer o que aconteceu em maio de 2019, quando o Parlamento aprovou (também em coligação negativa para o Governo), o descongelamento das carreiras dos professores e o Executivo fez a conta à despesa adicional — 600 milhões, 800 milhões se se juntassem todas as carreiras especiais — e António Costa ameaçou com a demissão.  Desta vez o impacto orçamental não é tão significativo e o primeiro-ministro não só diz que não “há tempo para crises políticas”, como acrescenta mesmo que “as condições de governabilidade só estão em causa quando a Assembleia da República apresentar uma moção de censura. Até aí, o Governo está em funções”.

Pela minha parte tenho pouca disponibilidade para a ficção e estou mais concentrado em coisas concretas”, atirou ainda António Costa quando foi questionado sobre a estabilidade política.

E pelo meio ainda vincula o Presidente da República, ao dizer que é o próprio que “tem dito que o que o país tem de fazer até 2023 é vencer a pandemia e iniciar a reconstrução do país. E é isso que temos pela frente para fazer e não temos tempo a perder com crises políticas e absurdos do género”.

Para trás ficava a aparência serena, ao lado do Presidente da República durante toda a apresentação e entrega do prémio IN3+ da Imprensa Nacional Casa da Moeda, que premeia a inovação. Onde lembrou aquele momento longínquo do seu anterior Governo em que ofereceu uma vaca voadora à então ministra da Presidência e da Inovação, Maria Manuel Leitão Marques, agora ali presente como presidente do júri do prémio. “A Imprensa Nacional, não sendo uma vaca, voa”, atualizou António Costa destacando a iniciativa e capacidade de inovação da instituição.

Já Marcelo, na sua intervenção, fez questão de dizer que ali estava porque o primeiro-ministro tinha insistido e de lembrar o quão raro é ter Presidente e primeiro-ministro num evento, além do 10 de junho. Fez aí um paralelismo, lembrou os séculos de história da “tensão entre a inércia e a inovação”, até se colou ao Governo no pedido de colaboração do mecenato e das fundações para que se atinjam as metas de investimento global em inovação, conhecimento, ciência e tecnologia. Seguiu caminho sem dizer mais do que um “mantemo-nos em contacto” a António Costa, mesmo antes de entrar no carro e deixar para trás o primeiro-ministro com a batata quente nas mãos.