O Governo está a estudar a melhor forma de responder à decisão presidencial de promulgar, contra aquela que era a sua vontade, o reforço de apoios sociais para famílias, trabalhadores independentes, sócios gerentes de empresas e profissionais de saúde. António Costa está entre a afirmação do princípio da lei-travão — que não tem dúvidas que foi violado — e o aproveitamento de um flanco aberto pelo Presidente nos argumentos que acompanharam a promulgação. Onde não havia certeza em enviar os apoios para o Tribunal Constitucional (TC), há agora ponderação de prós e contras.

No ponto 9 da mensagem publicada este domingo à tarde no site da Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa escreveu que “a interpretação que justifica a promulgação dos presentes três diplomas é simples e é conforme à Constituição: os diplomas podem ser aplicados, na medida em que respeitem os limites resultantes do Orçamento do Estado vigente. É este o ponto que António Costa considerou “inovador” e “muito criativo”, segundo apurou o Observador junto do Governo, já que “dá uma carta em branco ao Governo para cumprir até ao limite do que entenda ser a capacidade orçamental”.

A frase, entende-se no Executivo, “pode dispensar” o Governo da ameaça que fez de pedir a fiscalização sucessiva da constitucionalidade das normas aprovadas naquela junção de forças que faz tremer o Governo: todos-os-partidos-menos-o-PS. Antes da decisão, a ministra da Presidência disse, no briefing do Conselho de Ministros, que o Governo utilizaria “todas as prerrogativas” de que dispõe, quando confrontada com essa hipótese. A investida oficializaria um confronto político sensível com o Presidente, numa altura de maioria parlamentar frágil para António Costa no Parlamento. E isto quando todos garantem não estarem interessados numa crise política, com Costa à cabeça, como disse esta segunda-feira.

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Mas sobre o Governo pendem ainda, nesta fase, vários argumentos e um deles é a questão de “princípio”, de “proteger a lei travão”, diz ao Observador fonte do Executivo, que é o argumento mais favorável para agir junto do TC — a hipótese de ser o grupo parlamentar do PS (que precisava de apenas de 23 deputados) a pedir a fiscalização sucessiva da constitucionalidade está afastada. Mesmo que a solução presidencial pudesse trazer algum benefício, a convicção no topo do Executivo é que “libertar a Assembleia da República da norma-travão e ao mesmo tempo dar carta branca ao Governo só pode gerar muita incerteza jurídica“. E isto mesmo que Marcelo deixe escrito, no mesmo texto, que  sua posição não condiciona outras sobre o mesmo assunto no futuro, já que recorrerá ao Tribunal Constitucional no caso de “convicção jurídica clara” e “no caso de a prática parlamentar passar a ser de constante desfiguração do Orçamento de Estado”.

Um dos constitucionalistas que alguns membros do Governo têm citado muito nos últimos dias, Vital Moreira, veio tomar posição frontalmente contra Marcelo. O independente que já foi cabeça de lista do PS a umas Europeias escreveu no seu blogue, que com a decisão de domingo, “o Presidente coonestou deliberadamente o confisco parlamentar de um poder constitucionalmente exclusivo do Governo”. E mais: “O Presidente deixa claramente entender que optou pela promulgação, ignorando a lei-travão, porque concorda com a solução política das leis em causa, assim sobrepondo abusivamente o seu juízo de mérito político ao do Governo”. Pelo que o constitucionalista considera que Marcelo “não se limitou a suspender a ‘norma-travão’ orçamental; suspendeu também os principais parâmetros constitucionais que balizam a sua ação”.

Não foi, contudo, o único constitucionalista a discordar de Marcelo Rebelo de Sousa. Esta segunda-feira, em declarações à agência Lusa, Jorge Reis Novais e Paulo Otero também se distanciaram da posição presidencial nesta matéria.

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Aliás, não é preciso recuar muito para, em contexto de pandemia, encontrar uma decisão presidencial em sentido contrário a esta, também sobre uma medida aprovada com a junção todos-os-partidos-menos-o-PS. E foi igualmente sobre o alargamento de um dos apoios no âmbito da pandemia: a extensão das ajudas aos gerentes de micro e pequenas empresas e empresários em nome individual, os chamados sócios-gerentes. É verdade que, nessa altura (junho de 2020) o Presidente justificou o veto com a eventual inconstitucionalidade por violação da lei-travão, mas também não é menos certo que mostrou vontade em promulgá-la. Não só disse que era um apoio “socialmente relevante”, como indicou o caminho para os partidos contornarem o veto: bastava que apresentasse a mesma medida no debate do Orçamento Suplementar, que estava em vias de acontecer.

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A tese agora defendida por Marcelo não deixa de ser vista como uma “nova doutrina” no Governo que até pode resultar nociva no futuro, precisamente porque implica com uma norma importante para manter as condições de governabilidade e o equilíbrio orçamental (entre receita e despesa), mais ainda em situações que podem ditar “geometrias variáveis” no Parlamento que ameaçam essa mesma previsão. Recorde-se que em 2019, uma coligação negativa para o Governo aprovou o descongelamento do tempo de contagem das carreiras dos professores e fez António Costa ameaçar com a demissão e, na sequência disso, o PSD recuar na votação final. Mas dessa vez o impacto que o Governo previa apenas com esta parte do descongelamento era na ordem dos 600 milhões de euros, sobre o Orçamento que estava então em vigor.

Um dos argumentos agora usado por Marcelo para validar a medida tem a ver com a falta de quantificação do impacto dos reforços que a oposição aprovou no Parlamento. Diz o Presidente que os diplomas “deixam em aberto a incidência efetiva na execução do Orçamento do Estado”. E que o Governo já deu provas de “prudentemente” enfrentar “a incerteza do processo pandémico, quer adiando a aprovação do Decreto de Execução Orçamental, quer flexibilizando a gestão deste, como aconteceu no ano 2020”. Um convite às cativações, um instrumento de gestão orçamental em que o anterior ministro das Finanças chegou a ser recordista e também muito criticado pela esquerda.

Mas se Marcelo argumentou com a ausência de impactos estimados, também é público que quando decidiu tinha já em mãos um parecer que lhe tinha sido enviado pelo Governo, com argumentação pró-fiscalização preventiva de constitucionalidade, que incluía essas previsões. No texto do parecer estavam as contas do Governo, que estimou em cerca de 250 milhões de euros neste ano esse mesmo impacto. Mas este parece ser agora um argumento menor, já que no Executivo o entendimento é até que “se o calendário de desconfinamento se cumprir, algumas destas alterações nem chegarão a ser aplicadas”, já que são medidas criadas no contexto da pandemia e das restrições aplicadas, nomeadamente a suspensão das aulas presenciais e de alguma atividade económica.