O conteúdo da denúncia anónima que chegou ao Ministério Público meses antes do assalto a Tancos, que dava conta de um plano de assalto a instalações militares no centro do país, era demasiado vago para ser investigado, considerou esta manhã Joana Marques Vidal. A ex-Procuradora-Geral da República, que avaliou a queixa como “vaga” e “superficial”, recusou, porém, afirmar que a investigação a esta queixa teria evitado o assalto, mas lamentou as condições das instalações militares do país.

Já passavam das 10h00 quando a sessão no tribunal improvisado no Centro Nacional de Exposições de Santarém começou. Joana Marques Vidal, que já tinha passado mais de uma hora dentro do carro a adiantar trabalho, entrou com a mesma postura que sempre a caracterizou. Sentou-se em frente ao coletivo de juízes e começou a responder às perguntas do procurador do Ministério Público. Mas foram os advogados de defesa que mais perguntas lhe fizeram sobre a queixa que três meses antes do assalto antevia o que iria acontecer.

“A leitura que fiz na altura e dos conhecimentos que tinha, não suscitou a necessidade de informar outras estruturas do Estado”, disse Joana Marques Vidal, arrolada como testemunha no caso Tancos, que decorre em Santarém. A magistrada sustentou mesmo que não foi a única a olhar para a queixa desta forma. Aliás, explicou, só tal justifica que esta participação tenha passado pelas mãos de dois juízes de instrução criminal do Porto e de Leiria que, apesar de alegarem não serem territorialmente competentes para o caso, podiam ter autorizado à PJ certas diligências caso olhassem para o processo como “urgente”. A mesma participação passou ainda pelo juiz Ivo Rosa, em Lisboa, que não considerou haver matéria para avançar com as diligências pedidas pela Judiciária.

O advogado de João Paulino, que agora é considerado o cérebro do assalto, ainda lhe perguntou se tivesse sido outro o desfecho desta queixa se o assalto teria sido evitado. “Não posso responder-lhe a isso”, disse Joana Marques Vidal, cuja avaliação à queixa, lembrou, foi feita numa altura em que não se sabe o mesmo que hoje. “Houve um olhar de vários magistrados”, afirmou, sempre cuidadosa nas afirmações.

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Já à tarde, a magistrada voltou a ser confrontada com o facto dessa queixa, — que se chegou à conclusão ter sido feita por Paulo Lemos (Fechaduras) convidado a participar no crime, — indicar que o assalto iria ocorrer nos arredores de Ansião. O advogado queria saber se a magistrada desvalorizava o crime que ali vinha descrito e as possibilidades de investigação.

“Os factos são graves só que não tinham a consistências suficiente para que considerasse que ia haver um furto. Era um denúncia anónima que necessitava de investigação e melhor prova”, respondeu Joana Marques Vidal. Pelo que, afirmou, nem sequer foi considerada a hipótese de alertar o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas para essa ameaça. Mais tarde, na sessão, o diretor da Polícia Judiciária civil acabaria por assumir que não foram feitas diligências neste caso, e que ele nem sequer foi comunicado de imediato à Direção Nacional.

“Fiquei indignada com o comportamento do diretor da PJM”

No dia em que foram recuperadas as armas furtadas nos Paióis Nacionais de Tancos, em outubro de 2017, a então Procuradora-Geral tentou ligar várias vezes ao diretor da Polícia Judiciária Militar (PJM), agora arguido. Tentou através da sua secretária, depois conseguiu o número de telemóvel e até deixou mensagem no telemóvel, mas Luís Vieira nunca lhe devolveu a chamada. O que a irritou.

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O armamento foi recuperado durante a madrugada num descampado na Chamusca, mas só na manhã desse dia 18 Joana Marques Vidal soube o que se estava a passar. E não o soube pela PJM. Foi , sim , alertada pelo diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) que a alertava para um comunicado da PJM enviado à comunicação social que dava conta da recuperação das armas, referindo que o Ministério da Defesa e o DCIAP tinham sido informados.

“Estranhei o teor do comunicado, porque o comunicado estava escrito nuns termos dos quais resultava que a PJM ia comunicar ao diretor do DCIAP o que se estava a passar. Como se o DCIAP e o MP (Ministério Público) fossem entidades estranhas daquilo que se estava a passar”, disse.

A estranheza da leitura do comunicado e o facto de Luís Vieira não lhe atender o telefone para a esclarecer, levou-a a telefonar ao ministro da Defesa, Azeredo Lopes, também no banco dos arguidos por denegação de justiça. “Falei dando conta do meu desagrado”, recordou. Disse-lhe que não estava a conseguir falar com o diretor da PJM para perceber porque é que o MP não tinha imediatamente informado da recuperação das armas “fazendo notar que a atitude que estava a ser tomada estava a por em causa os princípios do Código do Processo Penal”.

Joana Marques Vidal reconheceu que Azeredo Lopes ficou sensibilizado, mas que não conseguia esconder o agrado da recuperação das armas. “Eu cheguei a dizer que estava contente, mas que gostaria de saber quem é que tinha furtado as armas”, lembrou, ameaçando depois avançar com um procedimento disciplinar.

“Estava indignada com o comportamento do diretor da PJM por não querer atender as chamadas da Procuradora-Geral da República e do diretor do DCIAP”, disse.

Mais tarde, em resposta ao advogado Ricardo Sá Fernandes, Marques Vidal reiterou a sua indignação e assumiu olhar para a investigação da PJM como ilegal. “Estava indignada porque aquela investigação paralela era completamente ilegal. Tinha que ser imediatamente comunicada às entidades competentes”, mesmo com a competência funcional”, disse.

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Diretor da PJM teve reação “desabrida” e “exaltada”

Já em julho, dias depois após o conhecimento do furto, Joana Marques Vidal tinha falado com Vieira ao telefone. E a chamada também acabou por revelar-se amarga. Segundo lembrou, foi nesse telefonema que lhe comunicou o que ficara decidido numa reunião que ela convocou e em que participaram o diretor do DCIAP, os procuradores titulares do processo e o diretor da PJ.

Aquilo que foi decidido na reunião foi que a PJ ficaria com a investigação e com a colaboração institucional da PJM”, disse, a magistrada.

No entanto, assim que o comunicou, Luís Vieira teve uma reação “desabrida, um pouco exaltada”. “O que levou a que eu tivesse necessidade de lembrar ao diretor da PJM alguns artigos do Código do Processo Penal”, referindo-se às funções que tem o MP e os órgãos de polícia criminal que o coadjuvam.

Alguns advogados tentaram perceber se a colaboração da PJM não lhe permitia fazer diligências. A magistrada respondeu não estar a par dos termos em que a colaboração entre as duas polícias se desenvolvia, o que é certo é que a recuperação de armas “tinha que ser imediatamente comunicada às entidades competentes”, mesmo tendo a PJM uma competência funcional.

O juiz, por mais que uma vez, chamou a atenção dos advogados para o facto de Joana Marques Vidal estar a responder enquanto testemunha e apenas sobre os factos de que teve conhecimento direto.

O atual diretor nacional da PJ, Luís Neves, era o responsável pela UNCC

PJM “armadilhou” toda a investigação. Paulino foi logo dado como suspeito em final de junho

Já depois do testemunho de Joana Marques Vidal, o atual diretor da PJ civil Luís Neves, à data do furto responsável pela Unidade Nacional Contra Terrorismo, seria a pessoa ideal para falar nesta divisão de tarefas. Neves começou por dizer que à PJM caberiam rondas, turnos e diligências mais relacionadas com a sua estrutura, assim como deviam entregar à PJ civil o expediente já produzido — como os interrogatórios feitos a todos os militares que estavam ao serviço nos Paióis Nacionais de Tancos na noite em que foi detetado o furto.

Mas rapidamente esta colaboração cessou. Luís Neves acusou em tribunal a PJM de ter “armadilhado” toda a investigação, ao vazar para a comunicação social toda a informação que recebia da PJ civil sobre a investigação ao caso. “Estávamos a ver a investigação a ser esventrada. Qualquer informação que dávamos aparecia na comunicação social”, disse Luís Neves, dando como exemplo a cooperação internacional e mostrando ter uma equipa no caso completamente “blindada” e por isso livre de fugas de informação.

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Mais, Luís Neves conta que a certa altura começou a perceber que todos os visados na investigação que estavam sob escuta pareciam saber que estavam a ser escutados e diziam a quem lhes ligava para falarem por WhatsApp ou por Messenger. Chegou a um ponto, disse, que as próprias propostas que a PJM fazia para avançar na investigação “não faziam sentido”. Até que um dia decidiu dar ordens para não serem transmitidas mais informações à PJM.

“Disse o ao coronel Estalagem, quando tentei por um cobro a este vazador de noticias. Estou convencido que em finais de julho ou agosto os autores do furto tinham sido indetificados e hoje estávamos aqui a fazer um julgamento apenas dessa parte”, afirmou o diretor.

Luís Neves lembrou também que o nome de João Paulino, que hoje é acusado de ser o cérebro do assalto, foi logo falado numa reunião que manteve com os responsáveis pela Investigação Criminal da PJM (o coronel Estalagem e o capitão Bengalinha) em finais de junho, inícios de julho, pouco depois do furto. O diretor da PJ tentou assim derrubar a tese dos militares da PJM e da GNR que estão acusados no processo,– e que até agora têm defendido sempre que negociaram com João Paulino a entrega das armas vendo-o como um informador, e nunca como um autor do crime.

“Quanto julgo saber, o senhor João Paulino foi procurado pelo [guarda Bruno] Ataíde. Portanto toda a gente sabia”, afirmou. “Investigação paralela? Não! Roda livre!”, acusou.

Neves assumiu que também a PJ não teve a investigação de casos da sua competência, como o caso das mortes dos Comandos ou o de Alcochete, em que estavam em causa crimes de terrorismo. “Aquela investigação devia ter sido atribuída à PJ. Não foi. Eu admitia alguém criar dificuldades?”, disse.

Ainda sobre a queixa de Fechaduras, o diretor diz que de facto a coordenação da PJ do Porto não transmitiu em tempo essa informação á Direção Nacional o que, garante, não acontecia agora. Até porque, afirma, desde que é diretor deu uma ordem às diretorias para informarem a Direção Nacional sempre que há denúncias de determinados crimes, além de terrorismo, pediu por exemplo que o avisem sempre que se registem crimes de ódio.