No dia em que ia ser operado a uma rotura de ligamentos no joelho, contraída num treino na primavera de 1982, Jean-Pierre Adams, internacional francês que na altura tinha 34 anos, enfrentou num só dia aquilo que poderia ser descrito como uma tempestade (im)perfeita. Nascido no Senegal, tinha superado dificuldades de todos os nível para chegar ao mais alto patamar do futebol, encontrando sempre respostas para as questões que lhe surgiam pela frente. Naquele dia, a 17 de março de 1982, não conseguiu ter soluções ao que não deveria sequer ter sido uma pergunta. A intervenção correu de tal forma mal que ficou em coma profundo. Até hoje. 39 anos depois, o antigo central gaulês morreu na sua casa, com 73 anos.

Jean-Pierre e Bernadette estão casados há 47 anos. Ele está em coma profundo há 36

“Não estava à altura da tarefa que me foi confiada”, admitiu a enfermeira que teria de fazer a preparação antes da intervenção cirúrgica e seguir a reação à anestesia no Hospital Édouard Herriot, onde se tinha deslocado pela primeira vez umas semanas antes para perceber o problema que tinha no joelho. “Tinha feito um raio-X e dali ele deveria ter vindo para casa mas quando estava a passar num corredor do hospital onde não conhecia ninguém, um médico reconheceu-o. Sabia tudo sobre futebol porque era adepto do Lyon”, contou a mulher, Bernardette, à CNN em 2016. O médico olhou para os exames, recomendou que fosse sujeito a uma intervenção cirúrgica e marcou a data para poder corrigir a mazela apesar de já ter acabado a carreira, até por estar nessa altura a tirar um curso para se tornar treinador das camadas jovens em Dijón.

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Nesse fatídico dia 17 de março de 1982, a maioria do staff do hospital em Lyon estava em greve. Como aquela cirurgia não era prioritária, Jean-Pierre ainda pensou que seria adiada. Avançou mesmo. Uma enfermeira que era estagiária e tinha chumbado no ano anterior tinha a seu cargo oito pacientes, “quase como se fosse uma linha de montagem” em duas salas, recordou Bernardette Adams. Vários erros foram cometidos depois da administração mal feita da anestesia, incluindo a colocação de um tubo que em vez de ventilar os pulmões estava a bloquear os mesmos, provocando com a falta de oxigénio uma paragem cardíaca.

Uma semana depois de ter cumprido 34 anos, Jean-Pierre Adams entrou em coma profundo como resultado dos erros cometidos nesse dia. A mulher não deixou o hospital durante cinco dias, esperando por um milagre que revertesse o drama, mas as lesões irreversíveis mantiveram-se. Até esta manhã.

Nascido e criado em Dakar, Jean-Pierre deixou o Senegal quando tinha dez anos numa peregrinação com a avó até Montargis, onde foi inscrito numa escola católica tendo pouco ficado com a nacionalidade francesa. Enquanto estudava, e para ajudar também nas contas de casa, trabalhou numa fábrica de confeção de borracha, sendo também nesse período que começou a jogar futebol em equipas amadoras.

Em 1967, com 19 anos, começou a jogar no Entente BFN, que foi duas vezes segundo classificado da Liga de Futebol Amador francesa, e assinou em 1970 pelo Nimes, clube que lhe daria a possibilidade de fazer a estreia no principal escalão nacional – com a curiosidade de entretanto ter passado de avançado para defesa central, fazendo prevalecer o físico que tinha como imagem de marca. Até 1979, passou ainda por Nice e PSG, antes de acabar nos amadores do Chalon depois de uma passagem pelo Mulhouse. Foi também durante essa década de 70 que se tornou internacional, formando com Marius Trésor “La Garde Noire” (“A guarda negra”). Ao todo foram mais de 20 internacionalizações, sem chegar a nenhuma fase final.

Antes, nos anos 60, Jean-Pierre tinha conhecido Bernardette num baile. Os tempos eram marcados por uma nova cultura marcada pelo Maio de ’68 mas o facto de Jean-Pierre ser negro e Bernardette branca ainda deu problemas ao casal. “Não posso esconder que foi muito complicado para a minha família no início. Nessa altura, um homem negro e uma mulher branca como casal não era bem visto. Mas fizemos a nossa vida juntos. Quando decidimos casar, escrevi aos meus pais para dar a notícia, a data do casamento e também um convite. A minha mãe convidou-nos para jantar. A partir daí, tudo mudou e já só queriam era saber dele. O Jean-Pierre, o Jean-Pierre, só falavam do Jean-Pierre!”, contou a mulher à CNN.

Jean-Pierre tinha um dom natural para cativar pessoas com a sua forma de ser, com a paixão que tinha pela vida, com um feitio brincalhão e bem disposto sempre pronto para roubar mais um sorriso entre o gosto por música brasileira, charutos e um particular bom gosto na forma de vestir. Pouco mais de um ano depois, saiu do hospital e foi Bernardette que cuidou do marido na casa de ambos, na zona de Nimes, nunca esquecendo com os filhos Laurent e Frédéric as datas especiais de aniversário, Natal ou Dia do Pai.

“Nunca ninguém se esquece dos presentes para ele. Costumamos comprar t-shirts ou pijamas porque todos os dias troca de roupa, coisas para melhorar o quarto e alguns perfumes. Costumava usar um da Paco Rabanne mas como o que mais gostava foi descontinuado agora compro o Sauvage by Dior”. Mesmo nos anos 90, no seguimento do julgamento que condenou o anestesista e a enfermeira a um mês de pena suspensa (que passou a multa), recusou considerar a eutanásia e assim se manteve até à manhã desta segunda-feira.