A história é sobre a relação de um pai e de um filho, desde que nasceu até se tornar adulto. É para a ouvir que cerca de uma dezena de crianças ucranianas se juntam num tapete, em redor da autora e ilustradora do livro “O Camião de Histórias”, Rosário Alçada Araújo. O pano de fundo é uma grande divisória amarela e azul, que separa a zona das dormidas, onde se lê: “Bem-vindos a Lisboa”, com a tradução em ucraniano por baixo. Mas nenhuma daquelas crianças que escuta a história tem o pai consigo. Pelo Centro de Acolhimento de Emergência em Campolide, Lisboa, onde agora estão e onde decorreu a iniciativa, já passaram 1.474 pessoas — dessas, 403 são crianças. O número de pais a acompanhar os filhos é quase nulo — ficaram para trás, para combater contra a Rússia ou à espera de serem chamados. Vêm, por isso, pela mão das mães.
É o caso de Vladislav, que veio pela mão de Oksana, de 28 anos. Com quase cinco anos, o menino “tem noção” da guerra que se vive no país onde nasceu. “Pergunta quem é que está a bombardear, por que razão é que está a bombardear, quando é que pode voltar para casa, quando é que tudo fica calmo. Tem noção das coisas. Não pergunta com tanta frequência, mas pergunta”, conta a mãe ao Observador, com ajuda de uma tradutora. “Tem uma mãe que o apoia. Ele está bem”, acrescenta, enquanto o menino se abraça às suas pernas.
O pai de Vladislav, divorciado da mãe, ainda não foi chamado para combater, por isso, a criança fala com ele quando quer e “sem problemas”. “A comunicação é boa. Sempre que ele quer, pode falar com o pai“, explica Oksana. Apesar da distância, “está feliz porque o filho e a família conseguiram sair de lá [da cidade de Mykolaiv]”. “Ele relata um cenário muito triste e assustador, com bombardeamentos a toda a hora”, acrescenta a mulher que, como centenas de outras que chegaram a Portugal nas últimas semanas, se inclui agora no grupo de refugiados, pessoas que fugiram de um país em guerra.
Ainda no passado dia 29 de março, um míssil russo abriu um buraco gigante num edifício de nove andares, matando pelo menos 12 pessoas e ferindo mais de 30. No mesmo dia, pelo menos três pessoas morreram e mais de 20 ficaram feridas, num ataque à sede da administração regional de Mykolaiv.
Família fugiu em meados de março. “Naquela altura, já se ouviam bombardeamentos. Agora, o cenário é horroroso e assustador”
Quando, nos meados de março, Oksana — junto com o filho, o irmão, a cunhada e o sobrinho — deixaram a cidade de Mykolaiv, no sul da Ucrânia, o cenário não era o que se vive agora. “Naquela altura, já se ouviam bombardeamentos, já se ouviam barulhos. Aí aconteceu o início do ataque à cidade”, conta Oksana. O prédio onde vivia ainda está inteiro. Contudo, em vários bairros, “já há prédios sem janelas, sem paredes, pisos caídos sobre outros, tudo destruído”. “Se lá estivesse agora, o cenário era bem horroroso e assustador“, remata, arreliando os olhos.
Já não sabem ao certo a que dia chegaram àquele Centro de Acolhimento de Emergência — que atualmente acolhe 153 pessoas e 32 crianças até aos 16 anos. Terá sido a “20 e tal de março”. Saíram da cidade de Mykolaiv de comboio e assim fizeram todo o percurso até chegarem a Lisboa, com paragens na Polónia, na Alemanha, em França. Ao todo, a viagem durou quatro dias.
Durante a iniciativa da editora Leya, sentada em redor de uma mesa branca de plástico, Oksana, acompanhada pelo irmão e pela cunhada, observa de longe o filho, pouco atento a ouvir a história. Impaciente, ora põe na cabeça um grande cão de peluche ora o senta na cadeira amarela onde ele devia estar sentado — a mãe e o tio riem-se. Tenta dizer alguma coisa em voz baixa — a mãe faz-lhe sinal para ficar sossegado, não conseguindo porém conter o riso. Vladislav desiste e acaba por correr para os braços da mãe. E ali fica. Ela abraça-o.
A vida de Oksana fica marcada por outra separação forçada pela guerra. Na Ucrânia, deixou o seu pai mas também a mãe para trás. Vivem em Nova Kakhovka, uma cidade mais pequena e ainda mais a sul que Mykolaiv, “cercada pelos russos”. “Então, os meus pais não puderam sair”, lamenta Oksana, acrescentando: “Há casos de pessoas que saíram nos seus próprios carros e foram simplesmente assassinadas. Para não correrem esse risco, não saem”. No final da iniciativa, também a mulher de 28 anos pegou num exemplar do livro e começou a folheá-lo.
“Quis sobretudo que fosse uma história de afetos”. Livro foi ilustrado com as cores da bandeira da Ucrânia, “por acaso”
O livro infantil “O Camião de Histórias” foi lançado em março, mas foi agora publicada uma edição especial em português e ucraniano, criada exclusivamente para as crianças ucranianas que procuram refúgio em Portugal. Um total de 150 livros vão ser dados às crianças que passarem por ali, no âmbito da iniciativa da Leya. “Como o livro fala de afetos, achei que, de alguma maneira, podiam dizer alguma coisa às crianças. Não tem grandes referência culturais”, explica a escritora Rosário Alçada Araújo ao Observador. Além do dia-a-dia do pai e do filho, o livro evoca histórias infantis como a história da Branca de Neve ou a Gata Borralheira. “São histórias universais. Achei que com elas podia chegar mais facilmente às crianças. Ou conhecem as histórias ou, se não, vão passar a conhecer”, adianta ainda.
Foi há 20 anos que Rosário Alçada Araújo escreveu o primeiro livro para crianças. Licenciada em Direito, a autora deixou a vida de jurista cedo para tirar um mestrado de Sociologia da Comunicação em Londres, onde acabou também por frequentar um curso de escrita criativa para crianças. A maioria das suas obras é recomendada no Plano Nacional de Leitura. Em 2018, escreveu um livro ao abrigo de uma bolsa que ganhou do Ministério da Cultura: A história do livro “O país das Laranjas” inspirava-se na vinda de 5,5 mil crianças austríacas para Portugal após a Segunda Guerra Mundial.
Pouco depois de lançar “O Camião de Histórias”, surgiu a decisão de o traduzir. “Foi tudo muito rápido. Tivemos a ideia numa conversa entre mim e o editor [da ASA infantil], Vítor Silva Mota, propusemos à administração da Leya, que foi logo muito aberta. O Vítor [Silva Mota] arranjou nesse dia uma tradutora que fez a tradução em dois dias. Em duas semanas, o livro ficou pronto“, relata ao Observador.
Foi Olesya Zaruma Biletska, natural de Lviv e a viver em Portugal há 18 anos, a responsável pela tradução do livro de Rosário Alçada Araújo. Licenciada em Terapia Ocupacional na Escola Superior de Saúde de Alcoitão, trabalha junto da população idosa na Casa da Nossa Senhora do Rosário, em Lisboa. Em 2020, começou a tirar o curso de tradução na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Patrícia Furtado ainda vê uma terceira linguagem no livro, além do português e do ucraniano: a ilustração. Foi ela quem o ilustrou. Ao folheá-lo, saltam à vista as cores da bandeira da Ucrânia: azul e amarelo. Mas Patrícia Furtado garante que foi uma coincidência. “A escolha das cores foi um acaso. O livro tem personagens que vão desde que nascem até ficarem mais velhos e achei que para haver uma linguagem que mostrasse que eram sempre as mesmas personagens, decidi que estariam sempre vestidos da mesma maneira ao longo do livro”, explica ao Observador.
Nascida em Lisboa em 1977 e licenciada em Design e Comunicação, trabalhou em design gráfico e web design, mas passou a fazer ilustração editorial e infantil ao trabalhar no The Lisbon Studio. Em 2020, escreveu e publicou o seu primeiro livro infanto-juvenil, “Matilde e a Cidade das Portas Mágicas” — o desejo de escrever um livro já era antigo.
Quando a história acabou de ser lida, o tapete onde as crianças se reuniram estava quase vazio. Restava uma ou duas, acompanhadas por Patrícia Furtado. “As ilustrações são a forma de linguagem mais comum. Não falamos a mesma língua, mas estou a brincar com as crianças e eu não falo uma palavra de ucraniano. Podemos sempre pegar num caderno e fazer desenhos. A ilustração é universal”.