Como em vários outros episódios da guerra na Ucrânia, também a história sobre o fim do navio-almirante da frota russa no Mar Negro, o Moskva, depende de quem a conta. Não só quanto às circunstâncias do afundamento, como também quanto ao destino dos seus 510 tripulantes. A Ucrânia alega que não houve sobreviventes. Os EUA admitem que alguns marinheiros russos — apenas alguns — terão escapado, não se sabendo quantos. A Rússia, que tem desvalorizado o tema, assegura que os tripulantes escaparam. Mas a cobertura dos media estatais revela algumas incongruências, como mostra o The Telegraph.

Até se ter afundado, o Moskva, construído na era soviética, comandava a poderosa Frota do Mar Negro e era considerado um dos principais ativos militares da Rússia. O seu afundamento está, por isso, a ser apelidado pelas forças ocidentais, nomeadamente dos EUA, como um símbolo de “humilhação” para Moscovo — e, especificamente, para Putin. Certo é que a Rússia se tem escusado a dar muitos detalhes sobre o incidente. E quando o faz é para dizer que não foi tão grave quanto diz o Ocidente.

As versões divergem radicalmente. Kiev tem alegado que o navio se afundou porque foi atingido por mísseis ucranianos, enquanto a Rússia diz que foi um incêndio — não ligado às forças da Ucrânia — a danificar gravemente a estrutura, o que, conjugado com o mar agitado, acabou por afundar o navio quando estava a ser rebocado. Além de não serem claras as circunstâncias do incidente, não é também certo o que aconteceu aos tripulantes.

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Na versão da Ucrânia, nenhum tripulante foi resgatado com vida — e entre os mortos estará até o capitão do navio, o comandante da frota do Mar Negro, Anton Kuprin (uma informação contrariada pela Rússia). “Vimos que outros navios tentaram auxiliá-lo [ao Moskva], mas mesmo as forças da natureza estiveram do lado da Ucrânia porque a tempestade impossibilitou a operação de resgate e a retirada da tripulação”, disse Natalia Gumeniuk, porta-voz das forças militares do sul da Ucrânia, durante um briefing, na sexta-feira.

Também Anton Gerashchenko, conselheiro do Ministério do Interior ucraniano, informou na sexta-feira que “a explosão foi tão forte que o navio da frota do Mar Negro afundou-se numa questão de minutos”. O responsável acusou ainda as forças russas de esconderem “deliberadamente a verdade dos familiares e amigos dos membros da tripulação”, assegurando que “toda a tripulação do cruzador Moskva morreu”. O Telegraph lembra, porém, que Gerashchenko já fez declarações no passado que se revelaram sem fundamento.

Mas mesmo no Ocidente não há uma versão única. O Telegraph dá conta de relatos que sugerem que apenas “algumas dezenas” de tripulantes, entre os 510 que estavam a bordo, foram salvos antes de o navio se ter afundado. E se os EUA endossaram a versão ucraniana no que toca à causa do afundamento — um alto responsável do Pentágono revelou, na sexta-feira, que o cruzador foi afundado por dois mísseis ucranianos — o mesmo não acontece quanto ao número de sobreviventes.

É que o mesmo responsável do Pentágono disse acreditar que o ataque fez algumas vítimas, mas não precisou quantas. Mais: os EUA viram sobreviventes a serem resgatados por outros navios russos nas proximidades, indicou. Mas não confirmou uma outra história que circula: a de que o exército da Ucrânia distraiu a defesa do Moskva com um drone de um lado do navio, enquanto os mísseis Neptune o atingiam do outro lado.

Também o ministro da Defesa da Lituânia, Arvydas Anusauskas, disse que haverá sobreviventes. A versão lituana é que pelo menos 54 pessoas foram retiradas para um navio turco depois de o Moskva ter enviado um pedido de socorro na madrugada de quinta-feira.

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Estas versões, mais ou menos fatalistas, têm sido contrariadas pela Rússia, que desde o primeiro momento afirma que o navio-almirante foi “gravemente danificado por um incêndio”. Mesmo quando admitiu a perda do navio, reafirmou que a tripulação foi retirada por navios da Frota do Mar Negro que vieram em socorro do Moskva. E divulgou imagens que, diz, são recentes e mostram os sobreviventes — entre eles o capitão da Frota, Anton Kuprin.

Um artigo editado e uma coroa de flores

A história contada pelo Telegraph ajuda a perceber a falta de clareza da versão russa e tem a agência de notícias estatal russa Tass como protagonista. Logo na quinta-feira, a Tass começou por noticiar que “toda a tripulação” tinha sido retirada do navio, mas o texto foi depois editado e a palavra “toda” retirada.

Já na sexta-feira, a agência noticiou que a tripulação foi “devolvida” ao porto de Sebastopol, mas não referiu quantas pessoas regressaram ao certo. E, este sábado, dois dias depois do incidente, o ministério da Defesa da Rússia anunciou, com um vídeo, que o chefe da marinha russa, o almirante Nikolai Yevmenov, e o capitão Anton Kuprin (que a Ucrânia deu como morto) se encontraram com membros da tripulação do navio, assegurando que continuariam a servir na marinha. Mais uma vez, sem indicar quantos tripulantes sobreviveram.

As imagens, que a Rússia diz serem recentes, mostram o que parecem ser vários marinheiros alinhados (o ministério da Defesa alega que são os tripulantes do Moskva). Yevmenov e Kuprin aparecem a cumprimentar alguns elementos.

Mas há um outro elemento que pode indiciar que a tragédia foi mais grave do que a Rússia quer fazer crer. Na sexta-feira, um vídeo publicado pela Tass dava conta que dezenas de pessoas se juntaram na cidade de Sebastopol, a base da frota russa no Mar Negro, na Crimeia, para lamentar a destruição do navio. Alguns dos manifestantes colocaram flores em memória do cruzador, foi relatado. “Mesmo para quem não esteve nele, o Moskva era um símbolo para todos, um símbolo do nosso poder, da nossa esperança, do renascimento da frota na década de 1990” após o colapso da União Soviética, disse o capitão Sergei Gorbachev.

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Há, porém, um pormenor que não foi mencionado pela Tass, segundo o Telegraph: uma coroa de flores fúnebre tinha gravada a mensagem “Para o Moskva e os seus marinheiros“. O mesmo foi relatado pelo site informativo de São Petersburgo Fontanka. Na manifestação esteve ainda um padre ortodoxo russo.

O Telegraph diz que, caso a tripulação — ou grande parte dela — tenha morrido, este ter-se-á tratado do incidente com mais mortes entre militares russos desde a Segunda Guerra Mundial.

Artigo atualizado com as imagens divulgadas pelo Ministério da Defesa russo do que diz serem os tripulantes do Moskva