“E se Zelensky é judeu? Isso não nega a presença de elementos nazis na Ucrânia. Quando dizem ‘que tipo de nazificação é esta se somos judeus’, bom, penso que Hitler também tinha origens judaicas. Por isso, não significa nada.”

Foi assim que Sergey Lavrov, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, respondeu a perguntas sobre as intenções russas de “desnazificar” a Ucrânia e desconsiderou o facto de Volodymyr Zelensky ser judeu, tendo até perdido parte da família no Holocausto. Israel condenou as declarações, o próprio presidente ucraniano defendeu que eram uma prova de que a Rússia “esqueceu todas as lições da 2.ª Guerra Mundial” e a entrevista foi vastamente criticada. Pelo meio, trouxe de volta um mito urbano com quase um século: a ideia de que Adolf Hitler tinha ascendência judaica.

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Contudo, para entender a origem da quase teoria da conspiração de que o Führer tinha origens judaicas é preciso recuar ao século XIX. Ora, depois do final da 2.ª Guerra Mundial — ou seja, depois da morte de Hitler –, foram publicadas postumamente as memórias de Hans Frank, advogado alemão que governou a Polónia ocupada durante o conflito global. No livro de Frank, que foi condenado por crimes de guerra nos Julgamentos de Nuremberga, o autor refere que o ditador alemão lhe pediu que investigasse os próprios antepassados em segredo. A justificação, na altura e segundo o que é agora indicado pela AFP, prendeu-se com uma alegada chantagem que um sobrinho de Hitler estava a fazer ao próprio tio, ameaçando revelar ao mundo as origens judaicas da família.

Na obra, Hans Frank refere que descobriu que Maria Anna Schicklgruber, a avó paterna de Hitler, trabalhou como cozinheira na casa da família judia Frankenberger, em Graz, na Áustria. Segundo o advogado alemão, a correspondência que sobreviveu ao tempo sugeria que um dos filhos Frankenberger, de 19 anos, teria engravidado Maria Anna enquanto esta trabalhava na propriedade — algo que obrigava Frankenberger, o pai, a pagar uma pensão alimentícia para sustentar o neto ilegítimo.

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De acordo com o livro de Hans Frank, Frankenberger pagou esta pensão até a criança cumprir 14 anos — não necessariamente por caridade mas pela preocupação com a possibilidade de as autoridades serem envolvidas. Ora, esta criança, naturalmente, era Alois Hitler, o pai de Adolf. E é o facto de ninguém saber ao certo quem era o pai de Alois, o avô paterno de Adolf, que tantas dúvidas causou ao longo do tempo.

Desde que as memórias de Hans Frank foram publicadas, no início da década de 50, que a teoria de que o avô de Hitler seria mesmo um Frankenberger foi sendo contestada. Nikolaus von Preradovich, historiador alemão, foi o primeiro a contrariar esta versão ao garantir que estava completamente comprovado que não existiam judeus em Graz antes de 1856.

Ainda assim, e embora a linha de pensamento de Von Preradovich seja tida como certa, continuam a existir relatos disruptivos. Em 2019, há apenas três anos, o psicólogo Leonard Sax publicou um artigo na revista “Journal of European Studies” onde defendia que há arquivos austríacos onde é possível perceber que existia uma comunidade judaica em Graz desde a primeira metade do século XIX.

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