“Que a Cozinha Tradicional Portuguesa como a vi lhe dê, Joana, conforto, alegria e se reconheça nela. Afectuosamente, Maria de Lourdes Modesto. 24/3/2016”, lê-se na folha de rosto do livro, escrito a esferográfica a azul.
Este dia de março de 2016, em que conversámos na RTP3, terá sido o último em que estivemos juntas. Foi também o primeiro, de mais de uma mão cheia de entrevistas e muitas conversas paralelas, em que lhe levei o meu exemplar vergonhosamente imaculado da “Cozinha”, para que nele deixasse mais um bocadinho de si. Como se 20 anos de vida não fossem já suficientes.
O princípio, como Maria de Lourdes Modesto (que morreu a 19 de julho aos 92 anos) nunca se cansou de repetir, por mais repetitivas que fossem as perguntas, foi a televisão. O programa chamava-se “Culinária” e fez dela uma estrela. “A rapariga do dia seguinte”, escreveu-se nas revistas. Desde antes da estreia, em 1958, quando espantou o país ao mostrar em direto como se comiam alcachofras (chupando), ao momento em que lançou um desafio irresistível. Os senhores telespectadores tinham começado por reclamar: que a antiga professora do Liceu Francês era afrancesada na cozinha; que aquela receita tradicional não era assim; que a mãe, a tia, a avó, faziam de outra maneira. “Então tive a ideia de fazer um concurso de receitas”, contaria. “A cada mês, uma província. Recebi milhares.”
A diva e a crítica. Maria de Lourdes Modesto, a mulher a quem devemos a original cozinha portuguesa
Durante 20 anos, namorou aquelas cartas. Não era uma especialista, de facto. Curiosa e irrequieta, experimentou, conversou, viajou. Conheceu as autoras. Apercebeu-se da importância da comida para cada uma delas. Havia quem chorasse a falar dos pratos da avó. A cozinha, concluiu, era amor. E perdeu a coragem. Era demasiada a responsabilidade, mais ainda para uma perfeccionista. “Durante 20 anos, tive pavor de fazer o livro”, lembraria.
Até que, no final da década de 1970, tudo mudou. Começara a ouvir mal. Numa consulta, um médico disse-lhe que tinha um tumor no cérebro. “Pensei, ‘pronto, vou morrer e não fiz o livro. Isto é uma vergonha.” É então que põe mãos à obra. Ao longo de três anos, volta às cartas, aos contactos, às viagens. Do lado de lá, as autoras das receitas recebem-na com entusiasmo. “E fui-me apaixonando completamente”, lembraria. “Tudo aquilo se tornou fascinante para mim. Parti do zero para uma paixão grande.”
Passadas mais de três décadas, no estúdio de chroma verde da RTP, enquanto se debruçava para assinar o meu exemplar vergonhosamente imaculado, o léxico mantinha-se. A bíblia era apenas “A Cozinha” ou “o nosso livro”, porque nunca olhou para as mais de 300 páginas do principal compêndio do receituário tradicional, o mesmo que fez dela parte indissociável da história da gastronomia e da cultura portuguesas, como uma obra só sua; antes, como uma obra coletiva. Até quando se referia ao monumental objeto fazia questão destacar o designer, o inexcedível Sebastião Rodrigues, responsável, por exemplo, pelo design da revista de culto Almanaque, e o “melhor fotógrafo”, Augusto Cabrita, que levou para o projeto António Homem Cardoso.
A 15 de janeiro de 1982, data do lançamento da “Cozinha”, Maria de Lourdes Modesto, de 51 anos, está longe de imaginar o que a espera. Mantém-se ligada ao mundo da comida, mas há anos que está arredada da televisão, desgostosa com o fim dos diretos. O país também já não é o mesmo que a aclamou. Nesse dia, ainda passa pela cozinha do hotel Ritz para fritar umas filhós de flor e as juntar à mesa com iguarias de cada região. Depois, muda de roupa e, ao final da tarde, junta-se no Salão Nobre aos convidados, muitos deles vindos da província. É uma festa, nas suas palavras, “lindíssima”. A primeira depois do 25 de Abril onde se vê mulheres com joias.
Maria de Lourdes Modesto. “Cozinhados era uma coisa a que eu não achava graça nenhuma”
O resto, como se costuma dizer, é história. Ou, nas palavras da própria, “uma explosão”. Nos dois primeiros meses, o livro só está disponível pelos correios ou na editora e formam-se longas filas em frente à Verbo, junto à Fundação Calouste Gulbenkian. Daí em diante, vender-se-ão mais de 400 mil exemplares, incluindo aquele com que cresci, em casa da minha mãe, os que hoje habitam de casa um dos meus irmãos e o meu, vergonhosamente imaculado.
É nisso que penso quando a vejo escrever “…lhe traga conforto, alegria…”. Nisto e na história que semanas antes me contara, noutra entrevista, mas em sua casa, na marquise com vista para as estrelícias (“Quem tem um jardim, quer sempre despedir o jardineiro”, desabafara). A história da rapariga que lhe aparecera com um livro que era “uma maravilha: cheio de nódoas, de notas, com as folhas a sair. Tinha o dobro do tamanho.” E como ela, com o entusiasmo que a rejuvenescia, perguntara, “‘Não me quer vender este livro? Porque eu comprava. Era uma maravilha.”