Ele chama-lhe “a banda do Zé Pretinho” mas em palco parece mais uma orquestra de folia, um carnaval ininterrupto e sem pausas, a celebração mais alegre possível do swing e do funk, do samba, do rock e do jazz. O que se ouve durante duas horas é euforia, exaltação, paixão e tesão. É o irresistível Brasil negro, a percussão infinita, “uma dança gostosa, danada”, como ouvimos a dada altura do palco.
É difícil imaginar forma melhor de passar uma noite quente de sábado ou de terminar um festival, neste caso o Cool Jazz, do que esta: com o capitão Jorge Ben, mestre de cerimónias de uma festa desbragada, e a sua banda, mostrando que a um festival de verão assenta na perfeição esta desbunda tropical que inquieta corpos. Ainda para mais, quando patrocinada por uma das figuras maiores da música brasileira, irmão de ritmo dos foliões Tim Maia e Gilberto Gil.
São 22h15 e vemo-lo chegar de óculos escuros, guitarra a tiracolo, vestido de branco, rodeado daquela banda que parece quase uma equipa de futebol (com o líder, são oito) sem travões. É ao público que se dirige antes de começar o concerto com a mítica “Jorge de Capadócia”, agradecendo-lhe por ali estar a ver um espetáculo que a pandemia retardou dois anos.
Passados dois anos e meio fechados em casa, é a primeira vez que estamos saindo para o exterior. E logo para um sítio onde toda a gente entende o que dizemos. Falamos iguais! Somos iguais!”, introduziria.
O arranque marcaria o tom da noite, duas horas de festa — e mais tempo tivesse Jorge Ben, mais tempo tocaria, “tem mais”, diz, sempre mais — quase sem interrupções ou pausas entre canções, ases e trunfos lançados um atrás do outro.
Primeiro veio “Jorge da Capadócia” e “A Banda do Zé Pretinho”, tema de 1978, ritmo acelerado, groove nas percussões e swing no piano. Depois “Santa Clara Clareou”, desse imensamente subvalorizado disco do início dos anos 80, Bem-Vinda Amizade, álbum de disco-funk tropical que impõe a dança ao ouvinte.
Jorge Ben Jor tem 83 anos (não parece) e há volta de 60 anos a gravar discos e dar concertos, ele sabe como isto se faz. Avança para o medley que gravou de “A Minha Menina” (que compôs, mas que ficou mais conhecida na versão de Os Mutantes), “Que Maravilha” e “Zazueira” e por esta altura já começa a haver alegria e incómodo a conviver nas filas próximas do palco, uma maioria que se levanta das cadeiras para dançar e outros que se lamentam por terem comprado um bilhete de lugar sentado (mais caro) e terem de ficar de pé para conseguir ver.
A primeira grande surpresa vem a seguir, com uma longa introdução instrumental — piano em grande destaque — antes de Jorge Ben começar a cantar os versos “Eu não consigo mais dormir à noite”. É o início de “Quero Toda a Noite”, canção que o mestre do samba esquema novo gravou com o brasileiro Fiuk (paulista, 31 anos) há pouco mais de dez anos. É uma surpresa feliz, acabam as dúvidas quando chega o refrão, a voz a vir das profundezas e a acompanhar o ritmo festivo gritando no ar:
Quero toda noite dormir junto sim
Quero toda noite te reencontrar
O concerto segue sempre imparável, as canções colam-se umas às outras, vem “Por Causa de Você” e “Mas Que Nada” (o primeiro grande sucesso de Ben Jor), ouvimos o capitão deste bloco frenético reagir ao entusiasmo do público — “está bonito!” — e cantar que “essa dança é gostosa, essa dança é danada”, antes de injetar mais sonhos e ritmo tropical, ele que mora num país tropical, abençoado por Deus, bonito por natureza, mas que beleza.
Público conquistado, telemóveis levantados no ar, é altura de chamar Tim Maia à conversa e continuar a celebrar o afro-Brasil, feito de balanço na anca e funk quente sambado, menos violão e bossa-nova do que calor no corpo e pista de dança com chinelo no pé: primeiro com uma versão de “Do Leme ao Pontal”, do seu mítico conterrâneo do Rio de Janeiro, depois com a sua “W/Brasil (Chama O Síndico)”, polvilhada de referências à central do Brasil e gritos alegres a convocar espíritos:
Eu vou chamar o síndico
Tim Maia!
Tim Maia!
A música não para mesmo e o ritmo nunca abranda. Vem “Heavy Metal”, vêm as míticas “Ponta de Lança Africano (Umbabarauma)” e “Fio Maravilha”, até que entra um conjunto de mulheres palco dentro e por ali ficam a dançar enquanto Ben Jor e a banda nos dão música, enquanto cantam “Gostosa” e “Taj Mahal”.
O relógio sugere que o concerto há de estar no fim. Olhamos para os ponteiros e percebemos que a festa dura há quase hora e meia. Ben Jor agradece “a Deus todo-poderoso” por poder estar aqui mas não dá sinais de querer ir embora. A voz, que nunca foi totalmente cristalina e polida, já acusa algum desgaste. E então, se é na “bagunça” e na “sujeira” que os corpos se libertam?
“Dá licença de eu tocar nesse lugar”, ouvimos em “Ave Anjos Angelis”, Ben Jor só quer “mostrar minha poesia”, pede reiteradamente “dá licença”, continua a tentar elevar a voz para acompanhar a banda, às vezes mais eficazmente, outras com algumas falhas. São 23h53, o concerto começou há mais de hora e meia e um assistente traz ao palco uma toalha, para que Jorge Ben possa enxugar a cara.
De repente a banda junta-se, ergue-se um pano com as bandeiras de Portugal e Brasil misturadas (meio-meio), Ben Jor grita “estamos juntos”, elogia o “povo quente maravilhoso” e maravilha-se com o “swing”, “esse piano ‘tá’ me matando”.
Parece o fim, mas é só ilusão: ouvimos “O Homem da Gravata Florida”, novamente o piano em grande destaque (em algumas sequências de notas a lembrar-nos Prince), e alguém aproxima-se do cantor em palco. Ele traduz ao microfone: “Temos ordem para tocar mais cinco minutos”, é preciso mandar tudo para casa. De fininho, os cinco minutos ainda se tornam uns 15 ou 20, ainda dá para a desbunda “Zumbi”, para a maravilhosa “Bebete vãobora”, para “Take It Easy My Brother Charles”.
Jorge Ben acaba ajoelhado, braços no ar, mãos a bater no peito e a apontar para o público em sinal de agradecimento, sai de palco a atirar cumprimentos ainda com a banda a tocar. Despede-se “até para o ano” se for possível, a banda ainda se diverte sozinha por uns segundos mas rapidamente lhe segue os passos.
Balanço feito, não foi um concerto tão impressionante quanto o que Jorge Ben Jor deu em 2019 no Parque da Cidade, no Porto, durante o festival Primavera Sound — pela voz que agora já derrapa mais aqui e ali mas sobretudo por problemas técnicos de som, que chegava às últimas filas em condições pobres sempre que aquela comitiva batucava, soprava e teclava mais entusiasticamente e em simultâneo. Mas foi mais uma grande oportunidade de ver uma figura cimeira da história da música em língua portuguesa.
Em 2022 perdemos Elza Soares, é certo. Mas num ano em que o Brasil se está a fazer ouvir em Portugal com particular força — pelo país já passaram Sessa, Rodrigo Amarante, Bala Desejo, Marina Sena, Milton Nascimento, Rincon Sapiência, Anitta e Letrux, entre muitos outros, havendo ainda concertos previstos para outubro de Tim Bernardes —, num ano em que ilustres da canção brasileira, Caetano Veloso e Gilberto Gil, comemoram 80 anos de nascimento (tocaram ambos em Portugal no ano passado), aquelas bandeiras misturadas pareceram ainda mais simbólicas. “Falamos iguais, somos iguais”, ouvimos este sábado. Um abraçaço, Jorge Ben, e até já.