É depois da ruína que é preciso vir à tona. Em Recomeçar, Tim Bernardes até já o ensaiara timidamente. Depois de se afundar em canções de fim, em descrições detalhadas e resignadas de histórias de corações desfeitos, prometia-nos com o seu canto: “Eu não vou mais me fechar p’ra sempre”. Saía do quarto escuro forçando a fé no futuro, ao cantar esperançoso: “A dor do fim vem p’ra purificar”. Ei-lo agora já não apenas resignado, já não apenas crente q.b. no que há-de vir mas maravilhado com o que vem mesmo: o novo disco do jovem prodígio da canção brasileira, Mil Coisas Invisíveis, é um álbum de cristão novo militante na igreja do otimismo amoroso.

Não é que por aqui não continuem a ouvir-se canções que chafurdam em fins de relações (o exemplo mais claro, ou pelo menos menos apaziguado, é “Olha”). E não é que o primeiro álbum do vocalista, compositor e maestro desse espreguiço tropical pop-rock que é a banda O Terno fosse um disco exclusivamente de desamor, exclusivamente de fazer chorar as pedras da calçada: por cada facada amorosa no coração cantada em “Ela” ou “Não”, ouvia-se desalento pelo Brasil (“Tanto Faz”) e limpa-palato para as tragédias mundanas (“Pouco a Pouco”).

Mil Coisas Invisíveis é outra coisa, porém. Já pressentíamos pelos singles, confirmamos após ouvir o disco: Tim Bernardes também canta hoje a alegria. É talvez o antídoto de que precisávamos para a velha tese romântica de que é nas dores, no sofrimento e na arte que disso se alimenta que encontramos o génio.

A leveza também dá grandes canções, a alegria também é bom combustível para a arte e o canto. O cinismo que embrulhe e resista ao prazer, aos sorrisos parvos na cara, que oiça Tim Bernardes, como se estivesse sentado à guitarra a ver um pôr do sol atlântico, a cantar “nós não vamos mais ser tão sozinhos bebê”. Ou muito pouco depois, iluminado e feliz, chinelo no pé e chope na mão, bigode e cabelo farto ao vento, a começar uma canção sem medo (bendito seja) de soar piroso:

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Toda a beleza
todo o amor
é lindo
é realmente lindo

De repente vem-nos à cabeça uma ficção e imaginamos João Gilberto Prado Pereira de Oliveira ainda vivo, o pai da bossa nova regressando ao seu refúgio caseiro depois de uma breve saída à rua para, porque não, um breve jantar no Mariu’s, restaurante do bairro Leme da zona sul do Rio de Janeiro — ali bem perto da praia de Cocabana. Imaginamo-lo já confortavelmente no sofá, a ouvir Mil Coisas Invisíveis, sorrindo também enquanto escuta o jovem Tim a cantar que “a saudade já foi embora” (“Realmente Lindo”). Chega de saudade, que “se vá a tristeza”.

Ao velho jeito alegre de ser triste, à quente melancolia de quem canta as dores com jeitinho e doçura (como Gilberto o cantava nessa canção dorida), o jovem escritor de canções conseguiu juntar um canto sereno de alegrias sussurradas ao ouvido. Mil Coisas Invisíveis é um disco de canções que giram permanentemente, obsessivamente, inevitavelmente em torno de emoções. Em alguns casos são quase mini-contos ou curtas-metragens, históricas contadas e cantadas com pormenores minuciosos, detalhadamente visuais. Isso, porém, já não é surpresa: é só o talento já conhecido de Tim Bernardes.

Não é só sofrência, bebê

Ouvimo-lo sumariar, logo no arranque do disco, o ciclo completo da vida com uma lucidez incomum: Tim Bernardes a cantar em “Nascer, Viver, Morrer”, tema nascido e trabalhado inesperadamente à margem da missão de compor um disco, que quer “viver na realidade / que é onde é possível”. Ouvimo-lo confiante, crente “no mundo, na mente, no sonho, no ser”, certo da importância de “no raro momento infinito viver”:

As coisas existem com força e magia
e eu sou a consciência da coisa que eu sou
eu quero e eu amo e eu posso e eu vou

É como se as dores estivessem já digeridas, as “marcas do caminho” cantadas fossem já encaradas menos tragicamente, mais naturalmente. Não é por acaso que a segunda canção, “Fases”, começa com a ilusão do regresso da sofrência e choradeira (“Acho que o tempo passou / para nós / alguma coisa ficou para trás”) para depois dar uma guinada:

Fases, fases vão passando
eu não posso mais lutar contra.
Medos, medos também passam,
eu nunca deixei de enfrentar.
Trago marcas do caminho,
perdi a pureza da infância.
Trato as mágoas com carinho,
elas já são parte de mim.

É em “BB (Garupa de Moto Amarela)”, porém, que está a canção que não pensáramos vir a ouvir na voz de Tim Bernardes: uma canção de amor sem mas, uma cantiga-declaração com mel a escorrer, o músico a desafiar “namora comigo, eu namoro com você”, a confessar sem medo da piroseira “com você eu sonho de olho aberto bebê / quero amar e sempre ver de perto você“.

Talvez tenha sido preciso um longo caminho — um disco a solo, quatro discos com banda, a idade adulta — para poder nascer uma boa canção de amor sem receios, sem romantização de sofrimento. Foi preciso cantar primeiro o desamor (sem lamechice), os corações partidos (revistos de forma iluminada), os desencontros, até que este paulista filho de músico (Maurício Pereira) nos diga sem vergonha, embalado por percussão luminosa, violão e violinos, desafiando a velha máxima de que “todas as famílias felizes se parecem umas com as outras” e que portanto é melhor narrar outras histórias:

Vamos explorar Santa Cecília, bebê
eu sigo você, sossegado.
Pode-me seguir também
vou-te fazer bem,
podemos curtir de mãos dadas.
Você muda tudo e tudo fica tão bem,
mil cores, melhores amigos.
Nós não vamos mais ser tão sozinhos, bebê.
Conto com você, pode contar comigo

Por esta altura já a impressão se instalou, se Recomeçar fora a afirmação a solo, Mil Coisas Invisíveis é o que poderíamos chamar de disco de consagração: um álbum de um escritor de canções no pico da criatividade, de um dos grandes cantores da lusofonia do presente (longe vão os tempos da voz adolescente de “66”), de um inventor de arranjos complexos que não complexificam em demasia a canção, não retiram a voz e as palavras do centro da composição.

Com Tim Bernardes vamos avançando, da alegria suave de fim de dia de “Realmente Lindo” (na voz a melancolia e a quietude, nas palmas e nas palavras a festa desacelerada) a “Meus 26”, uma espécie de revisão do passado, a voz a subir e descer sem fraquejar, o violão a soar alto e baixinho, São Paulo, Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro (“continua lindo / mas não anda muito bem”) revistas como terras emocionais, o Brasil e a biografia pessoal a misturarem-se servindo de motor à canção:

Meu país, minha cabeça variada
quer ser tudo de uma vez.
E a minha visão curta, inacabada
que olha tudo mas não vê.
Vai chegar 2020 como chegou o 2000,
qual a história se repete?
qual a gente nunca viu?
Mostrar o Brasil p’ro mundo
ou o mundo p’ro Brasil.
(…)
Presos entre um fim e um recomeço
ou entre o começo e o fim.
Do céu eu reconheço algum mistério
que existe dentro de mim
As curvas às vezes me lembram o infinito,
às vezes me lembram o fim.
O mundo tem mil coisas invisíveis
nada é só concreto assim.

Passamos “Falta”, canção levemente menos inspirada do disco, e aterramos em “Velha Amiga”, tema comovente dirigido a um antigo amor, como “Ela” e “Não” (do anterior disco) já resignado mas a soar agora emocionalmente mais em paz. Tim fez “o que podia”, e “você também fazia”, mas “tentar viver de amor só / não bastou“.

A serenidade é aqui talvez ilusória (será?). Vamos embalados pelas recordações, pela “história interrompida dorida”, pelas “tardes antigas, nós na pista / bicicletas na avenida”, pela esperança resgatada a canções alheias (com uma referência à socapa a “Detalhes”, de Roberto Carlos). E o bardo a assumir que também teve uma “manhã tão fria”:

Da cozinha eu vejo a cama, está vazia.
As coisas mudam e me resta agora
querer bem — e mudar também. 

É tempo de “sofrência” no disco — e Tim avança de “Velha Amiga” para “Olha”, se não a canção mais sangrada certamente a mais desencantada, acusações disparadas (“quando eu dei trégua, você quis revanche / e eu não hesitei em avançar (…) terminou no grito / e o ódio que eu guardei foi meu comigo”), a inquietação a pairar e a falta de resposta à pergunta de um milhão de reais: “Como chegámos nesse ponto?”.

O tom denso, pesado mas pesado à Brasil (terra da densidade passeada a chinelo), mantém-se com “Esse Ar”. Mas é em “A Última Vez” que Tim Bernardes volta às grandes canções, levando-nos até a um quarto e a uma cena de filme, um reencontro apaixonado mas fugaz e condenado com uma antiga namorada. A minúcia das descrições mostram-nos o reencontro cena a cena.

Chega o clímax (“ela cantou e me puxou p’ro quarto / olhos nos olhos, os dois pelados / abraçados juntos até o final”) mas voltam as lembranças, “todas as cicatrizes que você me fez / e as marcas tristes que eu deixei em você”. Desfazem-se as ilusões “de achar que isso agora era só vontade do corpo”, conclui-se tristemente “eu não sabia como era fria a vida sem o seu carinho / mas mais triste é saber que sabemos que juntos também ficou frio”. O final torna a canção antológica e a desilusão menos trágica, é Tim Bernardes a notar com sapiência que o amor, que é quase tudo, nem sempre basta:

Não sobrou mais nada p’ra gente 
e talvez nem falar, nem chorar
pois p’ra nós já passou até a despedida
Porque a gente sabe, e talvez sempre soube
que só separados achamos saída
e que às vezes se escolhe entre amor e alegria na vida

Por esta altura ainda teremos pela frente um banquete de cordas e melodias, canções como “Mistificar” (em que o ouvimos cantar que “a ilusão faz parte de se apaixonar”), “Beleza Eterna” (o cansaço de não ter “como descansar”, a dessintonia com o quotidiano moderno “do celular, do computador”) e “Leve” e a sua lição de que “deixar para trás / pode ser andar para a frente“.

Mas o disco não termina sem que oiçamos a esperança de “A Balada de Tim Bernardes”, com a sua receita para as chatices diárias — “e porque não cantar? / e porque não cantando?” —, com a sua sátira a essa “encenação chamada virar adulto” (“o tempo é tudo junto / sem separação / sem ter barra de compasso / sem ter ponto ou traço / sem ter travessão”). E, talvez mais ilustrativa ainda do tom do disco, com a regeneração amorosa bem clara:

Eu vou sonhar, eu vou sonhar mais uma vez
porque esse sonho acabou, não é um sonho velho que vai acabar comigo
(…)
a vida é feita para aproveitar e de algum jeito acho que estou aproveitando
se por acaso o amor chamar mais uma vez, acho que vou
eu quero ir
inclusive acho que já estou tentando

Acabamos tudo ao som de “Mesmo Se Você Não Vê” e, quando ouvimos que “o céu está sempre estrelado / mesmo se você não vê”, que “as grandes dúvidas desaparecem / quando o sol aparecer”, confirmamos que Tim Bernardes é mesmo evangélico-novo do otimismo e da esperança. Não é negacionista das dores, é crente na regeneração. E canta-a com tanto cuidado que até os mais cínicos voltam agora a ter um motivo para acreditar.