De um dia para o outro, o teor das publicações de Igor Kuryan nas redes sociais mudou drasticamente. O ucraniano, natural da cidade de Kherson, é um apaixonado por jardinagem. Cuida do seu “jardim dos contos de fadas”, como lhe chama, e, assim, o seu Facebook estava repleto das espécies que por lá cresciam — desde malmequeres, bambus, abacates ou palmeiras.

Um dia depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia, a 25 de fevereiro, o homem de 55 publicou uma selfie com uma espingarda, anunciando que se tinha voluntariado para lutar numa das unidades de Forças de Defesa Territorial ucranianas. Até aqui, tudo fazia sentido. Foi em abril, já com Kherson controlada pelas forças russas, que tudo mudou.

As suas redes sociais começaram, gradualmente, a contar uma história. Primeiro, era um ucraniano patriota — imagens partilhadas mostravam que, em 2014, foi ajudar os militares no âmbito dos conflitos com as forças separatistas pró-Rússia. Depois, começaram a surgir vídeos estranhos: num deles, conta a americana CNN, surgia magro e pálido, no meio de dois homens armados e mascarados. Nas mãos tinha a bandeira ucraniana e a bandeira vermelha e preta do movimento nacionalista deste país. Dizia que Kherson estava ocupada, relatava que a Defesa Territorial daquela cidade estava desfeita. Noutro vídeo, já denunciava o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. Não valia a pena lutar: “Creio que mais resistência é inútil”. De mãos atadas, e num cenário com armas à vista, alegava que tinha feito parte de um complô, liderado por Kiev, para atacar soldados russos e ativistas. “Sugiro que todos os combatentes da Defesa Territorial rendam as suas armas”, dizia. Transmitido na televisão estatal russa, aquele conteúdo circulava pelo Facebook, pelo Instagram e até pelo TikTok.

Só que Igor Kuryan não tinha TikTok, não sabia utilizá-lo — nem sabia o que era. Mais um argumento que alimentava as suspeitas: ele não era o verdadeiro autor das publicações. Sabe-se agora que o homem tinha sido capturado pelas forças russas, num dia de abril em que cuidava do seu jardim. “Eles começaram a usar as redes sociais do meu pai. Viram que ele era ativo no Facebook, registaram-no no TikTok — o meu pai nem sabe o que o Tik Tok é”, explicou a filha, Karyna, jornalista de 23 anos, que deixou a Ucrânia quando a guerra começou. “Quiseram fazer dele um fantoche”, disse à CNN, a quem forneceu as imagens do pai a ser usado pela máquina de propaganda russa.

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Kremlin captura ucranianos para alimentar máquina de propaganda

Kurayan já está em casa. Um mês depois de ter sido raptado, foi libertado, numa troca de prisioneiros. Falou com a estação de televisão norte-americana através de uma videochamada encriptada, relatando ser apenas um dos ucranianos mantidos em cativeiro pelo Kremlin. Este controlo das redes sociais dos prisioneiros, relata, faz parte do modus operandi da Rússia: através delas, conseguem promover localmente os ideais pró-Kremlin — chegando até a encenar entrevistas onde se promove a guerra e o presidente russo Vladimir Putin.

O seu tempo em cativeiro dividiu-se entre tortura e a criação de conteúdo para as redes sociais nas mãos dos soldados russos. Acediam às suas contas, a partir do seu iPhone, e partilhavam conteúdo para, erradamente, mostrar que o ucraniano tinha traído a Ucrânia. Era um traidor-herói. “Primeiro queriam mostrar: ‘Olhe, aqui está um patriota, que depois trai o seu pais'”, explicou à estação americana. “Eles diziam ‘és uma pessoa muito famosa em Kherson… queremos que sejas presidente da Câmara’”. Desde 24 de abril, quatro dias depois de ser libertado, que nada é partilhado na conta de Tik Tok falsa, criada em nome de  Kurayan.

A história deste homem é um reflexo de como tem funcionado a máquina de propaganda russa. No início, relata a CNN, esta trabalhava a nível nacional — agora, está a apostar numa estratégia mais local, concentrando-se sobretudo nos territórios ucranianos ocupados.

“Estes novos esforços são localizados, estão a tentar convencer pessoas locais, em particular nas áreas ocupadas, de que a Ucrânia os abandonou”, disse Mykola Balaban, do Centro de Comunicações Estratégicas e Segurança de Informação. “No caso de Igor e de muitos outros, usam o conteúdo [partilhado nas redes sociais] também dentro da Rússia para mostrar ‘olhem este ucraniano que era ativista, pró-Ucrânia, agora percebe, mostramos-lhe o verdadeiro cenário da situação e ele agora é pró-Rússia e percebe o propósito da nossa luta’”.