Francis Scarr cumpre, desde fevereiro de 2022, uma função especial no panorama informativo: ver a televisão russa para que mais ninguém tenha de o fazer. As mais de mil horas de programação a que o jornalista tem assistido têm fornecido informações essenciais para entender a estratégia de comunicação do Kremlin — e sido decisivas na cobertura informativa dos países ocidentais.
Desde 2018 que Scarr, que trabalha na equipa da BBC Monitoring, segue os principais programas da televisão russa. Em declarações ao El Confidencial, diz não ter dúvidas: os sinais que apontavam para a invasão estavam todos lá. “Em última análise, tudo começou com a tentativa do Kremlin em manipular a população para os levar a aceitar algo assim”.
O ponto-chave na mudança da comunicação russa aconteceu em 2014 com a anexação da Crimeia, e as consequentes sanções impostas pelo Ocidente. “Foi nessa altura que se começou a assumir uma postura manifestamente agressiva, anti-Ocidente e anti-Ucrânia. É a esse tipo de linguagem que os cidadãos russos têm sido sujeitos de há anos a esta parte”, afirma Scarr.
O jornalista foca-se principalmente em talk-shows e programas de debate político, onde a retórica inflamada e belicista de comentadores pró-Putin é mais evidente. No entanto, como o próprio diz, essa retórica tem estado presente em discursos do próprio Putin e até mesmo em canais com projeção internacional, como o Russia Today ou o Sputnik. “A televisão russa tem instrumentalizado e espoletado as emoções dos russos nos últimos anos, preparando terreno para que o que a Rússia está a fazer agora seja visto como algo aceitável”.
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Os programas de debate político já eram habituais na televisão russa, mas a sua presença aumentou exponencialmente com o início da invasão. A título de exemplo, o programa 60 Minutes, exibido pelo Canal 1, passou a ter duas horas e meia, com uma edição matinal e outra noturna.
“O tipo de conteúdo habitual a que são expostos os russos é completamente diferente do que esperaríamos ver noutros países”, aponta Scarr. “A propaganda pró-guerra é tudo o que têm para ver na televisão”.
No entanto, é impossível controlar por completo a circulação de informação nos dias de hoje. “A Rússia não é a Coreia do Norte”, diz Scarr, lembrando que os cidadãos têm acesso à internet e a meios de comunicação independentes e até estrangeiros. A situação é exacerbada pelas sucessivas derrotas das forças russas no terreno, que se vão traduzindo em objetivos cada vez mais modestos. Neste cenário, a televisão russa assume um papel descodificador, de “dar forma às mensagens que interessam ao Kremlin”.
Meios independentes têm revelado conversas diretas entre comentadores pró-Kremlin e representantes do regime, com o objetivo de estabelecer os pontos-chave da propaganda russa. “Às vezes é óbvio, porque ouvimos frases que são repetidamente utilizadas nos principais canais”, aponta o jornalista da BBC, para quem, em sentido inverso, o silêncio também é revelador. “Quando há derrotas no terreno, como por exemplo na retirada de Kharkiv, não reagem verdadeiramente. Em qualquer outra televisão, seria de esperar, perante uma notícia semelhante, que reagissem. Isto sugere que estão à espera de instruções sobre o que dizer“.
Por outro lado, e como se tem visto, a posição russa não é dogmática, e tem, ao longo do tempo, sofrido mudanças. De uma “operação militar especial”, os políticos e meios de comunicação russos já vão fazendo menções a uma guerra; ao mesmo tempo, o foco mudou — da libertação da Ucrânia, passou a falar-se de um conflito contra o Ocidente, personificado numa nação que, nas palavras do próprio Putin, “perdeu a sua soberania”.
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A retórica anti-Ocidente é particularmente violenta. Segundo Scarr, tal serve para “criar a ideia de que a Rússia é um forte sob assalto”. “Utilizam termos exagerados, hiperbólicos, falam, por exemplo, de como o Ocidente ‘quer eliminar-nos, destruir-nos’… acontece principalmente quando há retiradas do terreno”, sustenta o jornalista da BBC.