Quando, em 2008, a queixa do estado angolano por alegada burla na compra de ações do Banif chegou ao Ministério Público já tinha mais de 600 páginas e visava quatro suspeitos. Mas havia uma pergunta que, mesmo após o arquivamento da queixa, ficou sempre sem resposta: porque é que os angolanos deixaram passar tantos anos até se queixarem? O processo, porém, acabaria por ser quase uma comporta para uma série de processos que se seguiram e que acabaram por apontar as agulhas para a própria elite angolana. “O banco é apenas um pretexto para contar outras histórias, revelando uma autêntica teia de nomes, relações perigosas, negócios obscuros e episódios rocambolescos passados nos últimos 15 anos nos setores da magistratura, da política, da economia e da sociedade português”, avisa o jornalista António José Vilela, que lança esta quinta-feira o livro “A Teia do Banif” pela editora Casa das Letras.

O Banif foi a primeira instituição financeira portuguesa que Angola tentou controlar logo no início dos anos 90, mas o negócio “dissimulado”, como os próprios queixosos acabaram por descrevê-lo, acabaria num caso de polícia nas mãos de um procurador que, anos depois, seria também ele condenado corrupção por ter recebido dinheiro de Angola por causa dos processos que tinha em mãos: o procurador Orlando Figueira.

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Na altura, Angola queria investir milhões de euros no Banif, mas uma alegada burla terá feito desaparecer o dinheiro investido em ações dos cofres do Estado angolano. Na inédita queixa entregue ao então Procurador-Geral da República português, Pinto Monteiro, por um advogado que representava o estado angolano, o dedo era apontado a quatro portugueses: o advogado Francisco Cruz Martins e os empresários António Figueiredo (dono do grupo ETE, ligado ao transporte de mercadorias) e Eduardo Capelo Morais (empresário com interesse no ramo imobiliário). Angola apontava também como suspeito o próprio banqueiro Horácio Roque, dono do Banif.

Segundo o depoimento do então governador do Banco de Angola no processo, Amadeu Maurício, ainda nos anos 90 terá sido Carlos Silva (advogado luso-angolano, à data trabalhava como estagiário, que acabou por ter uma carreira na banca, tendo mesmo sido envolvido no caso Fizz, embora sem ter sido acusado) a propor a compra de ações do Banif ao consultor jurídico do Presidente da República. Uma informação mais tarde rebatida pelo próprio Carlos Silva, que admitiu saber do negócio mas não ter tido interferência.

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O negócio da compra de 49% do Banif acabaria por arrastar-se ao longo de anos, por causa de alegadas “dificuldades financeiras do Governo angolano” e em 2006 Angola acabara por perder o controlo dos muitos milhões e dólares investidos.

Antes de optarem pela queixa-crime, contou o governador, ele próprio tentou resolver o caso de outras formas. Chegou a reunir pessoalmente o advogado Francisco Cruz Martins (que anos mais tarde acabaria por ser espancado à porta de casa por outra alegada dívida), mas ele tinha tido uma reação surpreendente: explicou que o negócio com Angola o tinha deixado sem casa, sem escritório e que até lhe tinha custado o casamento. Uma versão na qual Amadeu Maurício nunca acreditou. Num outro encontro, marcado no Casino Estoril, Cruz Martins, segundo Amadeu Maurício, quando o viu acompanhado de dois advogados angolanos acabou por sair apressadamente do local dizendo-se “traído” e dizendo que estava em perigo, pelo que se refugiara em Espanha.

Dos encontros, o advogado terá dado várias versões do destino dado às ações. Chegou a dizer que tinham sido entregues a a António Van-Dúnem, o consultor jurídico do Presidente, mas também chegou a reconhecer que afinal as tinha revendido a Horácio Roque por não ter sido devidamente pago pela intermediação no negócio. E que Angola lhe devia 20 milhões de euros.

Corria já o mês de julho de 2009 quando voltaram a ser ouvidas testemunhas no caso, um deles seria António Van-Dúnem. As testemunhas explicavam que a operação de compra do Banif tinha-se prolongado em quatro fases. Em 1994 foram compradas 1 milhão de ações, em 1995 outros dois milhões. Ainda nesse ano outros 1,7 milhões e depois 3,879.978 ações até 2007.

Entre 1994 e 2007 tinham passado 13 anos. E foi precisamente relativamente a este período que Orlando Figueira pediu dados financeiros e fiscais dos quatro nomes apontados pelos angolanos, assim como do Banif e de várias sociedades comerciais. O que forneceu ao Ministério Público informação que seria útil numa série de outros processos que acabaram depois por visar a elite angolana.

Espiões angolanos em Portugal

Também por esta altura entrou em cena o advogado Paulo Blanco em representação do estado angolano — o mesmo que seria anos mais tarde condenado no mesmo processo de Orlando Figueira. Um dos documentos que Blanco entregaria depois no DCIAP, na sequência de uma outra queixa por burla feita pelo estado angolano em 2010, tinha diversa informação recolhida pelos serviços secretos angolanos — o que revelava a presença de espiões angolanos em território português e com acesso privilegiado a segredos bancários de vários bancos em Portugal.

A propósito de uma burla denunciada em 2010 que defraudava os cofres angolanos em 164 milhões de euros, os espiões angolanos tinham conseguido entrar em vários bancos portugueses e recolhido um conjunto de informações sigilosas. No relatório há descrições de como o departamento de compliance do BCP analisou uma transferência de 16,8 milhões de dólares, sabendo mesmo que a conta era de uma empresa portuguesa, tinha sido aberta a 12 de outubro de 2007, ficara com saldo zero e mão era movimentada há pelo menos um ano (valor não chegou a ser creditado por ser suspeito). Não conseguindo localizar a empresa em Portugal, os espiões angolanos conseguiram no entanto descobrir o número de contas associadas àquele gestor, assim como o seu nome.

O relatório dava também exemplos de outras transferências mostrando que os espiões teriam acesso a dados bancários da CGD, BPI, Millenium BCP, assim como dados concretos das transferências. E mostrava mesmo missões no terreno, em solo português: os espiões angolanos terão vigiado locais onde estavam alegadamente sediadas as empresas suspeitos, embora alguns se tenham revelado apenas edifícios de habitação, e recolheram informações sobre alegados donos das firmas e até das suas famílias (com moradas, telefones, emails, e locais de trabalho dos cônjuges).

Dono do Banif nunca chegou a ser ouvido

O advogado Paulo Blanco, que representava o estado angolano, pediu às autoridades que ouvissem Horácio Roque. Roque falaria uma vez sobre o assunto, ao jornal Sol, dizendo apenas que tudo o que tinha feito estava registado e que de facto tinha vendido empresas aos três intermediários Cruz Martins, António Figueiredo e Eduardo Morais, recusando revelar pormenores. Horácio Roque morreu em 2010 com um derrame cerebral e não chegou a ser ouvido no processo. Também António Figueiredo, outro alvo, morreu ainda antes numa clínica na Suíça onde ficou internado depois de ter sofrido um acidente de barco que o deixou tetraplégico. Deixou uma herança de cerca de 70 milhões de euros.

Ainda antes de perceber, no entanto, todos os circuitos financeiros implicados no processo e analisar todas as contas dos suspeitos envolvidos, e sem uma explicação das razões para o Estado angolano levar tantos anos a queixar-se da burla, a queixa seria retirada. Razão: Angola tinha chegado a acordo com Cruz Martins e Eduardo Morais. E mais tarde com os herdeiros de António Figueiredo.

No despacho de arquivamento, Orlando Figueira explicava que sem a colaboração das autoridades angolanas seria uma “tarefa quixotesca e votada, claramente, ao fracasso”. Já à pergunta dos 192 milhões de dólares que Angola reclamava e porque esperou tanto tempo para o fazer, “não conseguimos encontrar resposta”, escreveu Orlando Figueira.

Numa tentativa de justificação para retirar a queixa, João Maria Sousa, à data Procurador-Geral da República angolana, diria numa entrevista escrita ao semanário Sol que não pretendia manter na justiça portuguesa “matérias que só a Angola interessavam”, alegando mesmo que manter o contencioso podia prejudicar as relações económico-financeiras de cada país”.

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Como a investigação ao BANIF foi parar à secretária de Armando Vara?

Um dos episódios rocambolescos que António José Vilela relata no livro prende-se com uma fuga de informação no seio da Polícia Judiciária que levou mesmo o juiz de instrução Carlos Alexandre e o procurador (seu amigo) Orlando Figueira a fazer uma busca às instalações que à data funcionavam na Rua Alexandre Herculano, um mês antes do arquivamento do processo Banif.

É que, a 23 de outubro de 2009, a PJ de Aveiro encontrava na secretária de Armando Vara, na sede Millenium BCP, no Tagus Park, cinco páginas do processo Banif e uma informação de que Sócrates estaria a ser escutado. As buscas, no âmbito da Operação Face Oculta, acabariam por denunciar uma fuga de informação na PJ.

Era o autor dessa fuga que Carlos Alexandre e Orlando Figueira procuravam quando irromperam nas instalações da PJ, na Rua Alexandre Herculano em Lisboa. Os alvos dos magistrados resumiam-se a 15 inspetores que tinham acesso ao Sistema da Unidade de Investigação Criminal. A identificação do rasto informático concluiu que tinha havido dois acessos ao processo Banif, ainda na fase inicial: a 28 de janeiro e a 12 de maio de 2009. A alegada toupeira usara o nome de MSantos e foi facilmente identificável. A inspetora, que à data até trabalhava na área da “moeda falsa” e dos “cartões bancários”, era casada com um inspetor que se gabava de ter contactos aos mais altos níveis. Acabou por responder em tribunal pelo crime.