O que terá provocado a extinção dos mamíferos gigantes que dominaram o Pleistoceno, entre há 2,5 milhões de anos e 12.000 anos, depois da última grande Idade do Gelo, é uma das perguntas que intriga os investigadores há décadas. Agora, o rico registo fóssil de Rancho La Brea, no sul da Califórnia, dá pistas sobre o papel dos grandes incêndios na extinção da megafauna — ao mesmo tempo que lança um alerta sobre o impacto que os incêndios atuais, cada vez maiores e mais intensos, podem ter na biodiversidade. Os resultados foram publicados na revista científica Science.
O betume natural de Rancho La Brea preservou os esqueletos de milhares de indivíduos de várias espécies que ocuparam a região durante o Pleistoceno. Preservou também, em muitos casos, o colagéneo desses ossos, o que permitiu a datação por radiocarbono dos fósseis — ou seja, permitiu determinar a antiguidade dos fósseis usando o isótopo radioativo carbono-14. A equipa coordenada pelos Museus de História Natural do Condado de Los Angeles conseguiu datar 172 indivíduos de oito espécies que viveram há 10 a 15,6 mil anos — sete dessas espécies extinguiram-se nesse período.
As espécies analisadas naquela região da Califórnia — com a exceção dos coiotes (Canis latrans), que ainda hoje existem — extinguiram-se há mais de 12.900 anos, ainda mais cedo do que a extinção global da megafauna na América do Norte. Os camelos-americanos (Camelops hesternus) e as preguiças-gigantes (Paramylodon harlani), que chegavam a pesar mil quilos, desapareceram umas centenas de anos mais cedo, devido ao desaparecimento de importantes espécies de árvores e de um ambiente cada vez mais árido.
Depois, praticamente ao mesmo tempo, o lobo pré-histórico (Aenocyon dirus), um bisonte de cornos gigantes (Bison antiquus), o leão-americano (Panthera atrox), uma espécie de cavalo-selvagem (Equus occidentalis) e o tão conhecido tigre-dentes-de-sabre (Smilodon fatalis) — que existia desde há 700 mil anos — extinguiram-se. Os investigadores atribuem esta extinção em massa a uma grande mudança nos ecossistemas a nível regional: alterações nas espécies de plantas presentes e uma quantidade de incêndios sem precedentes.
A extinção da megafauna levou a alterações significativas nos ecossistemas, de acordo com um estudo publicado, em 2022, na revista científica PNAS. A extinção de mamutes, mastodontes e tigres-dentes-de-sabre, por exemplo, cujos nichos e funções que ocupavam nunca foram preenchidos por outras espécies, levaram a uma perda de resiliência dos ecossistemas, diminuindo a capacidade de resistir a mudanças ambientais futuras. A equipa coordenada pela Universidade do Novo México alerta que este problema se mantém presente à medida que eliminamos os grandes mamíferos que povoam o planeta.
Temperaturas altas, seca e excesso de vegetação tornaram os incêndios mais graves
Os humanos, que já tinham chegado à América do Norte há 16 mil anos, poderão ser os responsáveis pela origem dos incêndios que se propagaram facilmente num ambiente propenso ao fogo: temperaturas altas, secura extrema e a acumulação de vegetação por redução na quantidade de herbívoros (que faziam uma limpeza natural dos matos).
Essa mudança de estado parece ter sido desencadeada por incêndios provocados pelo homem num ecossistema já em stress por causa de um rápido aumento da temperatura, uma mega-seca e uma tendência em escala milenar de perda de grandes herbívoros da paisagem. Este evento é paralelo aos processos que ocorrem nos ecossistemas mediterrâneos hoje”, escrevem os autores no artigo científico publicado na Science.
Certo é que o final da Idade do Gelo, há cerca de 11.700 anos, trouxe mudanças ambientais tremendas. A temperatura média anual terá subido 5,6º Celsius no período entre há 13 e 14 mil anos e mais 4,4º C entre há 11,8 e 13 mil anos. Uma subida de 10º C em pouco mais de 2.000 anos teve um impacto tremendo nos ecossistemas do sul da Califórnia: não só temperaturas mais altas, mas também menos chuva. As florestas de coníferas, dominadas por espécies do género Juniperus, deram lugar à vegetação típica de um chaparral (que tão bem conhecemos nas nossas paisagens alentejanas e na bacia do Mediterrâneo).
A presença de cinzas nos registos fósseis, indicador da atividade dos incêndios, aumentou ligeiramente há cerca de 13.500 anos num momento em que os humanos se estabeleciam no continente e o ambiente se tornava mais quente e seco. Há cerca de 13.200 anos, a quantidade de cinzas nos registos aumentou 30 vezes e manteve-se sempre em níveis muito alto a partir daí: “Uma magnitude sem precedentes nos 33.000 anos de registos”, escrevem os autores.
Os caçadores humanos, que se especializaram na captura de herbívoros gigantes, são apontados como uma das causas de extinção da megafauna. Mas, destacam os autores, as extinções em La Brea e o declínio global na América do Norte são anteriores ao domínio dessa população de caçadores. Assim, os humanos poderão ter tido um papel adicional na extinção destes animais através do uso do fogo. “A origem das ignições permanece em aberto, mas o aumento do impacto humano no ecossistema deve ser considerado como um fator causal potencial no intenso evento de queima de há cerca de 13.200 anos.”
Em 2021, uma equipa coordenada pela Universidade de Yale (Estados Unidos), abordava o problema de outro ângulo: a perda dos grandes herbívoros tinha alterado os regimes de incêndios em todo o mundo, conforme publicaram também na revista Science. Os herbívoros, bisontes, cavalos, veados ou as cabras e ovelhas, ajudam na prevenção dos incêndios porque consomem vegetação que, potencialmente, pode arder. Os investigadores verificaram que, no passado, a frequência dos incêndios aumentou mais onde a extinção dos megaherbívoros foi maior, como na América do Sul e algumas regiões de África.
Avançando 13 mil anos, a equipa dos Museus de História Natural de Los Angeles alerta que as alterações climáticas presentes e as atividades humanas estão a provocar mudanças equivalentes nos ecossistemas, que conseguem ser ainda mais rápidas: no último século, a temperatura média da Califórnia subiu mais de 2º C (dez vezes mais rápido do que durante a extinção da megafauna em La Brea); e, nas últimas duas décadas, a área ardida aumentou quatro vezes. Só este ano, já arderam mais de 96 mil hectares na Califórnia (quase 10 vezes mais do que em Portugal).
“Além disso, os ecossistemas ardidos não estão a recuperar até aos estados pré-incêndio, sugerindo que os limiares críticos para o restabelecimento já foram ultrapassados”, conclui a equipa.