Volodymyr Zelensky recusou a condecoração do Grande-Colar da Ordem da Liberdade que o Presidente da República lhe queria entregar, apurou o Observador junto de fonte que acompanhou o processo. O presidente ucraniano não o fez pela condecoração em si, nem por um qualquer desrespeito em relação a Portugal, mas porque não aceita nenhuma condecoração em tempo de guerra, pois entende, como explicou fonte diplomática ao Observador, que o “esforço é de todo o povo ucraniano”.
Em fevereiro quando anunciou que ia condecorar Zelensky, Marcelo disse que tencionava “entregar [a condecoração] pessoalmente quando for à Ucrânia”. E acrescentou que era o que tinha “feito com os chefes de Estado e com outros condecorados com essa ordem e outras ordens: é, na medida do possível, na primeira ocasião, entregar-lhes.” Mas o Presidente esqueceu-se de um detalhe: Zelensky não aceita qualquer condecoração.
Apesar de o Presidente ter essa intenção, terá sido avisado, ainda em Lisboa, que não seria possível entregar a condecoração em mãos. E que o colar (objeto físico) seria entregue pelos serviços diplomáticos portugueses ao serviços do Governo ucraniano como uma formalidade. E nunca a Zelensky, que recusou essa ordem (ou outra qualquer). Ficou claro que o Presidente ucraniano jamais receberia em mãos o colar. Nem em público, nem em privado.
Já depois da saída do artigo do Observador, a Presidência da República publicou uma nota no site oficial onde confirma que as “insígnias foram entregues esta semana em Kiev, por via protocolar”. O Presidente volta a omitir nessa nota a parte em que Zelensky recusou a condecoração e não a quis receber das mãos de Marcelo, dizendo o seguinte: “Tendo o Presidente Zelensky sublinhado que homenageia a luta do povo ucraniano, e não em cerimónia pública de imposição de insígnias: trata-se de uma fórmula também usual em visitas de Estado.”
O Presidente da República diz assim que é usual as insígnias serem entregues por via protocolar, mas todos os outros chefes de Estado que condecorou, receberam a condecoração presencialmente. Além disso, nenhum dos outros tinha recusado receber a distinção.
[Já saiu: pode ouvir aqui o terceiro episódio da série em podcast “Um Espião no Kremlin”, a história escondida de como Putin montou uma teia de poder e guerra. Pode ainda ouvir o primeiro episódio aqui e o segundo episódio aqui]
Marcelo Rebelo de Sousa omitiu este detalhe de que o colar não foi entregue, bem como a informação de que Zelensky não quer ser detentor desta ordem honorífica e que rejeitou recebê-la a título pessoal. Aliás, o nome de Zelensky nem sequer consta do site oficial da Presidência da República onde são listados os detentores do colar. A condecoração também não foi publicada em decreto no Diário da República. Sobre esta ausência em DRE, a nota da Presidência explica que “como é sempre o caso, o alvará de concessão só é publicado em Diário da República depois da entrega das insígnias.”
O Presidente da República, quando foi questionado pelos jornalistas, na Rua Khreshchatyk, em Kiev, quando questionado sobre se Zelensky recebeu a condecoração disse que o Presidente ucraniano “recebeu, obviamente [a condecoração], mas recebeu em cerimónia não pública. De forma discreta, que o caracteriza nesse particular”. Na verdade, o objeto chegou apenas aos serviços e não às mãos de Zelensky, segundo apurou o Observador.
Anúncio com elogios do Governo e críticas do PCP
Em fevereiro, quando Marcelo Rebelo de Sousa decidiu atribuir esta condecoração a Volodymyr Zelensky, escreveu numa nota no site da Presidência que, “tendo em conta a iniciativa parlamentar sobre esta matéria [uma proposta do PAN], anuncia desde já que decidiu atribuir ao Presidente da Ucrânia o Grande-Colar da Ordem da Liberdade”.
Na altura, a ministra da Defesa, Helena Carreiras tinha comentado que esta era “uma distinção mais do que merecida para alguém que está a lutar com determinação, persistência e coragem”, acrescentando que esta era “também uma distinção para o seu povo e para as próprias Forças Armadas ucranianas”.
Na altura, o PCP disse que a atribuição desta condecoração a Zelensky só podia ser recebida “com indignação por todos quantos conhecem o valor da luta pela liberdade que o povo português travou ao longo de décadas contra o regime fascista.” Em comunicado, os comunistas escreviam que “a atribuição a alguém como Volodymyr Zelensky, que reconhecidamente personifica um poder xenófobo, belicista e antidemocrático, rodeado e sustentado por forças de cariz fascista e nazi, constitui uma afronta aos democratas e uma decisão contrária à construção de um caminho de paz”.
Tirando duas exceções (a do ex-secretário-geral das Nações Unidas Kofi Annan e a atribuição póstuma a Amílcar Cabral), o Grande-Colar foi sempre a atribuído a chefes de Estado. As ordens honoríficas portuguesas já chegaram ser recusadas no passado pelo distinguido. Foi isso que aconteceu em 2000, quando o historiador José Manuel Tengarrinha recusou a condecoração.
De acordo com o site da Presidência, a Ordem da Liberdade “destina-se a distinguir serviços relevantes prestados em defesa dos valores da Civilização, em prol da dignificação da Pessoa Humana e à causa da Liberdade”. Diz ainda o site da Presidência que este Grande-Colar “é o mais alto grau da Ordem e é concedido pelo Presidente da República a Chefes de Estado estrangeiros” e “pode ainda ser concedido pelo Presidente da República a antigos Chefes de Estado e a pessoas cujos feitos, de natureza extraordinária e especial relevância para Portugal, os tornem merecedores dessa distinção.” É, no entanto, uma condecoração individual. Se Zelensky não a recebe, formalmente também não pode ser entregue ao povo ucraniano. A lista de detentores deste grau é a seguinte:
- François Mitterrand (Presidente da República francesa, a 28 de outubro de 1987)
- Juan Carlos I (Rei de Espanha, a 13 de outubro de 1988)
- Vaclav Havel (Presidente da República da República Checa, a 13 de dezembro de 1990)
- António Monteiro (Presidente da República de Cabo Verde, a 11 de novembro de 1991)
- Patricio Aylwin (Presidente da República do Chile a 26 de agosto de 1992)
- Miguel Trovoada (Presidente da República de S. Tomé e Príncipe a 12 de outubro de 1992)
- Lech Walesa (Presidente da República da Polónia a 11 de maio de 1993)
- Jeliu Jelev (Presidente da República da Bulgária, a 13 de setembro de 1994)
- Fernando Henrique Cardoso (Presidente da República do Brasil, a 4 de outubro de 1995)
- Sam Nujoma (Presidente da República da Namíbia a 11 de outubro de 1995)
- Luiz Inácio Lula da Silva (Presidente da República, a 23 de julho de 2003)
- Kofi Annan (ex-secretário-geral das Nações Unidas, a 11 de outubro de 2005)
- Joaquim Chissano (Presidente da República de Moçambique a 30 de junho de 2016)
- François Hollande (Presidente da República de França a 19 de julho de 2016)
- Michelle Bachelet (Presidente da República do Chile a 30 de março de 2017)
- Jorge Fonseca (Presidente da República de Cabo Verde a 10 de abril de 2017)
- Henrique (Grão-Duque do Luxemburgo, a 23 de maio de 2017)
- Juan Calderón (Presidente da República da Colômbia a 13 de novembro de 2017)
- Sergio Mattarella (Presidente da República de Itália a 6 de dezembro de 2017)
- Rei Felipe VI (Rei de Espanha, a 15 de abril de 2018)
- Amílcar Cabral (Líder do Movimento Independentista da Guiné-Bissau, a 1o de dezembro de 2022)
Artigo atualizado às 21h25 com nota oficial da Presidência da República sobre o assunto.