A Autoridade Tributária está a ser questionada pelo Tribunal de Contas sobre a atuação dos seus serviços na cobrança de IMI relativo às barragens e eventuais falhas nos procedimentos de liquidação deste imposto. A diretora-geral dos Impostos afirmou no Parlamento que os serviços fiscais estão a remeter informação pedida pelo Tribunal de Contas. Helena Borges adiantou que os esclarecimentos também estão ser entregues ao Ministério Público, no quadro do novo inquérito crime que foi aberto e que se centra nas práticas do fisco neste polémico e complexo processo de cobrança do IMI.
De acordo com informação recolhida pelo Observador, o Tribunal de Contas terá aberto dois processos na sequência de denúncias para apurar eventuais irregularidades na atuação do Fisco que possam ter lesado o Estado na coleta de receita, neste caso de impostos que são cobrados pela AT, mas que têm como destinatários os municípios onde estão localizados os empreendimentos hidroelétricos. Os processos no Tribunal de Contas visam ainda apurar eventuais falhas nos serviços de auditoria interna do Estado no controlo destes procedimentos.
Contactada pelo Observador, fonte oficial confirma apenas que o “Tribunal de Contas está a desenvolver uma ação de acompanhamento deste processo, a qual tem natureza reservada”, sem acrescentar mais detalhes. Este processo de acompanhamento poderá mais tarde vir a dar origem a uma auditoria ou até numa avaliação sobre a existência eventuais infrações financeiras que prejudiquem os interesses patrimoniais do Estado.
Demora do Fisco em avaliar barragens deixa caducar cobrança de IMI de 2019
Em causa estão os anos em que o Fisco não deixou de fazer cobrança de IMI sobre estes empreendimentos, mas também a ação mais recente dos serviços tributários para realizar essa liquidação, não só pela demora que traz o risco de caducidade, mas ainda pelo critério de valorização que exclui os ativos mais valiosos, diminuindo o valor a arrecadar.
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A Autoridade Tributária faz parte do universo de entidades que estão sujeitas à fiscalização do Tribunal de Contas, que já produziu algumas auditorias sobre a atividade e resultados de medidas, mas esta ação terá resultado de denúncias recebidas no ano passado. Em novembro do ano passado, o Movimento Cultural das Terras de Miranda divulgou um documento de 24 páginas no qual fundamenta o que considera serem “possíveis indícios de crime no IMI das barragens”.
Esta denúncia está centrada na cobrança de IMI nas barragens do Douro que foram vendidas pela EDP em 2020, um negócio cujos contornos já estão a ser investigados desde 2021 pela PGR por suspeitas de fraude fiscal. Mas as dúvidas suscitadas são extensíveis à cobrança deste imposto a todas as barragens nível nacional, mais de 100.
A atuação do Fisco também está ser alvo de um inquérito instaurado pelo Ministério Público na sequência de uma queixa apresentada pela Câmara de Miranda do Douro em janeiro, confirmou ao Observador o vereador Vítor Bernardo.
Os indícios em causa focam-se na mudança de entendimento por parte dos serviços fiscais relativo à cobrança de IMI sobre barragens, segundo o qual aqueles ativos estariam isentos por se tratarem de bens do domínio público. Essa mudança de entendimento aconteceu em 2016 fundamentada num parecer da Agência Portuguesa do Ambiente cuja intervenção neste processo também estará a ser averiguada.
Esse novo entendimento da AT resultou na anulação dos processos de liquidação de IMI em curso e na eliminação das inscrição das barragens nas matrizes prediais, que é o passo fundamental para a avaliação dos imóveis para efeitos do IMI. Uma ordem emitida pela atual diretora-geral de impostos, à data (2017) subdiretora-geral de Impostos.
Só em 2023, e depois de toda a polémica gerada sobre a fuga ao pagamento de impostos na venda de seis barragens por parte da EDP, é que o anterior Governo veio a reconhecer as pretensões dos municípios no sentido de que as barragens deveriam pagar IMI, através de um despacho do então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Nuno Félix fundamentava esta instrução com um parecer da Procuradoria-Geral da República.
O processo demorou muito tempo, argumentando o Fisco com a necessidade de fazer um levamento de todos os empreendimentos, mais de 300 ao nível nacional, e a sua inscrição na matriz. Perante a demora e o risco de prescrição, Nuno Félix fez novo despacho a reforçar as instruções à AT no verão do ano passado sobre a liquidação deste imposto.
Mas este longo caminho voltou a descarrilar por causa das divergências sobre os critérios a seguir na valorização das barragens para efeito de cobrança de IMI, com as autarquias a contestarem a exclusão dos ativos mais valiosos destes empreendimentos — os equipamentos de produção de energia e dispositivos de segurança. Uma contestação que teve por base a jurisprudência de um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo relativo ao IMI cobrado aos parques eólicos. Várias autarquias impugnaram os valores propostos pelo Fisco, agravando o risco de que o imposto a liquidar relativo ao ano de 2019 caducasse.
Já este ano e a semanas de sair do cargo, Nuno Félix produz um terceiro despacho a dar instruções à AT para que nos casos de impugnação por parte das autarquias do valor proposto para a liquidação do imposto, os serviços fiscais aceitassem essa contestação. Esta instrução limita-se aos processos de impugnação do valor nos quais está em causa o critério que exclui do valor tributário os equipamentos de produção e segurança e surge na sequência de apelos feitos pelas autarquias e pela Associação Nacional de Municípios.
Por estar em gestão corrente, Nuno Félix deixou para o próximo Governo a iniciativa de decidir alterar a circular da AT de 2021, segundo a qual a avaliação deve incidir apenas sobre a parte edificada (o paredão e edifícios), o que diminui o valor tributário e o imposto a pagar.
O atual Governo ainda não se pronunciou sobre este tema, mas o Observador sabe que está a ser preparada uma intervenção mais estrutural no tema do IMI das barragens, mas também de outros equipamentos para produção de energia renovável, cujos contornos exatos ainda estão a ser definidos.
Até agora, a AT já realizou mais de 150 liquidações de IMI num valor médio de 5,4 milhões de euros por ano relativos ao período entre 2019 e 2022. Mas apenas conseguiu cobrar 2% deste valor (125 mil a 130 mil euros por ano). Se é certo que em alguns casos, o prazo de cobrança ainda está a decorrer, Helena Borges assumiu que há impugnações do valor por parte das autarquias, mas também dos sujeitos passivos (as elétricas), sobretudo quando estão em causa montantes mais elevados.
IMI das barragens. Fisco liquidou 5 milhões por ano e ainda só recebeu 2%
A diretora-geral dos Impostos afirmou no Parlamento que essa instrução está a ser seguida, mas assinalou também que a jurisprudência sobre cobrança de IMI a equipamentos de energia renovável está longe de estar consolidada. Helena Borges referiu a existência de sentenças recentes de tribunais administrativos relativas a parques eólicos que vão contra o acórdão do Supremo.
A responsável refutou acusações de que tenha havido protelamento da AT na cobrança do imposto ou que tenha mudado de opinião após uma reunião com uma das elétricas, a EDP. “Não mudamos de posição por termos reunido com quem quer que seja. Nada foi decidido à margem de fundamentos jurídicos, há um percurso documentado desta evolução”.
Daí que a diretora-geral não se mostre incomodada com a nova investigação do Ministério Público à atuação do Fisco na cobrança do IMI das barragens envolvidas nessa transação. “Vimos com bons olhos este escrutínio, sabemos justificar todas as posições”. E revela que enviou toda a informação ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas, mostrando-se disponível para prestar mais esclarecimentos.