A liquidação do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) sobre as barragens relativo a 2019 caducou com a chegada de 2024. Esse é o entendimento das autarquias que têm vindo a reivindicar o imposto e para quem a culpa é da Autoridade Tributária. Em particular devido à demora na execução do despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de fevereiro de 2023, responsabilizando, por isso, a diretora-geral de Impostos, Helena Borges.

Apesar do processo de avaliação dos bens imóveis das barragens ainda estar a decorrer, com as autarquias a contestarem o valor proposto pelo fisco, sem existir uma avaliação final e uma nota de liquidação no prazo de quatro anos, o direito a liquidar o IMI caduca, defende António Preto, advogado que representa várias autarquias nesta batalha de valores contra a Autoridade Tributária. “Já só vamos ter notas de liquidação posteriores a 2023” e só se tiver havido liquidação do imposto é que a caducidade não se verifica, acrescenta.

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O jurista afasta ainda a ideia de que a contestação aos valores propostos pelo Fisco por parte das autarquias tenha feito a diferença do ponto de vista de demora do processo de avaliação. As primeiras avaliações começaram a chegar às autarquias entre o final de novembro e meados de dezembro. Bastava contar os 30 dias de prazo que câmaras e os sujeitos passivos (as empresas que exploram as barragens) têm para se pronunciar sobre a avaliação, para que já não fosse possível fazer a liquidação do imposto relativo ao ano de 2019.

A comunicação por parte do Fisco às câmaras dos valores matriciais das barragens algumas semanas mais cedo poderia ter feito toda a diferença, refere uma fonte tributária ouvida pelo Observador. Isto porque teria dado tempo às autarquias para apresentar uma segunda avaliação, fechando o valor final pela comissão de avaliação. E com esse valor patrimonial fixado, o direito a liquidar o IMI não caducaria.

E toda a gente sabia do risco de caducidade porque houve sucessivos alertas por parte do Movimento Terras de Miranda — o qual representa autarquias onde ficam as barragens do Douro vendidas pela EDP ao consórcio da Engie — aos partidos, ao Tribunal de Contas, à Inspeção-Geral de Finanças e ao Presidente da República. O Observador questionou o Ministério das Finanças sobre esta situação, mas não obteve resposta até agora. Bloco de Esquerda e o PAN já pediram explicações ao Governo sobre o tema.

Para as autarquias e seus representantes, na origem desta demora está a “resistência” da diretora-geral de Impostos à instrução dada pelo secretário de Estado, Nuno Félix, para se avançar com a cobrança de IMI — mudando a doutrina aplicada nos anos anteriores segundo a qual os ativos das barragens por serem do domínio público estavam isentos — levou a que os serviços tributários só começassem a remeter as avaliações dos peritos por si indicados perto do final do ano, como aliás indicou o secretário de Estado.

Chamada ao Parlamento em outubro para justificar a demora no processo de inscrição na matriz dos imóveis a tributar, o que seria o primeiro passo para a cobrança do IMI, a diretora-geral de Impostos, Helena Borges justificou com as dificuldades de execução da ordem. Segundo a atual diretora-geral estava em causa um trabalho exaustivo para 166 empreendimentos que envolvia 17 direções e 85 serviços de finanças a nível nacional, bem como a Agência Portuguesa do Ambiente.

Alguns destes empreendimentos viram a sua inscrição matricial apagada por indicação dada pelo próprio Fisco quando deixou de tentar cobrar o IMI, na sequência das impugnações sistemáticas das empresas visadas que resultaram numa reavaliação da doutrina da AT sobre esta matéria. Nesta reavaliação foi valorizada a declaração da Agência Portuguesa do Ambiente de que as barragens configuram domínio público isento de IMI e desvalorizados elementos que apontam no sentido contrário, como um parecer do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República e acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo.

Esta posição só foi revertida pelo despacho de fevereiro, cuja eficácia teve de ser reforçada por Nuno Félix com outro despacho emitido em agosto (muito duro para a Autoridade Tributária), mas cujos efeitos práticos só começaram a fazer-se sentir perto do final do ano.

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Quanto esteve no Parlamento em outubro, Nuno Félix sinalizou que a que estavam em curso as avaliações dos edifícios abrangidos, cujos resultados prometia para breve. Confrontado com o risco de prescrição, o governante admitiu que no caso de haver contestação desses valores — como se veio a verificar— isso pode fazer com que já não seja possível liquidar o imposto devido de 2019.

Para além de chegarem demasiado tarde para permitir a liquidação do imposto devido de 2019, as avaliações elaboradas pela AT deixam de fora a parte mais valiosa das barragens, argumentam os autarcas, o que corresponde aos ativos de geração elétrica. É o resultado da aplicação guia com instruções elaborado pelo fisco para os avaliadores “independentes” nomeados pelo Fisco. Essa é aliás a razão pela qual a generalidade das autarquias pediu uma segunda avaliação. Ainda que no comité que vá fixar o valor tributário final o Fisco tenha vantagem, a reclamação dos valores iniciais é um passo fundamental para avançar com impugnações judiciais.

A diferença entre os valores é significativa. António Preto dá o exemplo da Barragem da Bemposta no concelho do Mogadouro avaliada pelo fisco em 60 milhões de euros e para a qual o perito contratado pela autarquia contrapôs um valor de 160 milhões de euros. Considerando uma taxa de o,3% de IMI, a cobrança anual de imposto pode dar 180 mil euros ou 480 mil euros.

Mas mais do que a diferença o que preocupa os autarcas é o critério de valorização definido pela AT e que no passado recente já mostrou ser facilmente rebatido em impugnações judiciais no caso do IMI dos parques eólicos. Isto porque exclui os elementos que permitem gerar valor económico e estão ligados à geração elétrica, o que contraria o código do imposto. Daí que a eficácia da cobrança do imposto a partir de 2020 esteja comprometida, de acordo com os autarcas que contestam o critério de avaliação fixado pela AT.

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Perante a caducidade dos valores a cobrar em 2019, avançada pela SIC Notícias, as autarquias podem avançar com uma ação de responsabilidade extracontratual contra a AT por não dar execução em tempo útil ao despacho que determina a cobrança de IMI no que toca ao ano de 2019. Mas essa ação iria parar aos tribunais administrativos onde os processos se arrastam durante anos e até mais de uma década, ainda que estejam em causa vários milhões de euros de IMI que ficam por liquidar num universo de mais de 160 barragens para o ano de 2019.

Miranda do Douro entrega queixa-crime

Entretanto a autarquia de Miranda do Douro confirmou que irá apresentar uma queixa-crime contra “pessoas singulares desconhecidas” na Procuradoria-Geral da República (PGR), em Lisboa, por anulação de matrizes de IMI das barragens desde 2007. “Vamos apresentar na sexta-feira, durante a manhã, na PGR, uma queixa-crime contra pessoas singulares, mas que foram detentoras de cargos públicos desde 2007, até ao presente, mas que representam ou representaram cargos públicos nas entidades relacionadas com a anulação de matrizes do Imposto Municipal Sobre Imóveis (IMI), entre as quais a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), Autoridade Tributária, Direção-Geral do Tesouro entre outras”, confirmou o vereador Vítor Bernardo ao Observador.

O Ministério Público já está a investigar o negócio de venda de seis barragens no rio Douro à EDP e a forma como esta operação foi montada para, acusam as autarquias da região, contornar a obrigação de pagar imposto de selo. Nesta investigação, da qual pouco se sabe, a Autoridade Tributária é o órgão criminal.