“Não pretendo ser outro velho do Restelo, simplesmente procuro estar atento como tantas vezes fiz ao estado do mundo, que não vejo já como há uma década”, disse João Barrento, vencedor do Prémio Camões 2023, no agradecimento do galardão, que recebeu esta quinta-feira, em Lisboa, marcado pelo tom de preocupação com a língua portuguesa nos tempos em que vivemos.
“As palavras que usamos têm corpo, coisa hoje cada vez mais esquecida ou ignorada por quem as usa como meros instrumentos e recorrendo a toda a espécie de dispositivos. Senti isto de forma muito clara a voltar a ler a obra de Camões ou Jorge de Sena, Armando Silva Carvalho, Alexandre O’Neill, Vasco Graça Moura, Maria Gabriela Llansol e tantos outros”, partilhou o ensaísta, tradutor e crítico literário, num discurso no qual citou Camões, David Mourão Ferreira e Vasco Graça Moura. A cerimónia, que aconteceu ao final da tarde desta quarta-feira no Mosteiro dos Jerónimos, contou com a presença do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e da ministra da Cultura, Dalila Rodrigues.
Autor de uma vasta obra ensaística, João Barrento, 84 anos, tem uma carreira dedicada sobretudo à tradução de literatura de língua alemã. “A tradução é uma forma de escrita muito particular, é trazer o outro à nossa casa”, referiu o escritor minutos antes da cerimónia, em declarações aos jornalistas. “Reconheço a cada dia, das mais diversas maneiras, no modo como as pessoas falam, na própria imprensa, que a língua portuguesa está a ser bastante maltratada”, atirou. “Também há uma influência enorme do latim vulgar de hoje, que é o inglês e que tem uma intervenção muito forte nas nossas línguas. Há um descuido, e provavelmente o universo digital terá alguma coisa que ver com isso, porque desde os primeiros anos de aprendizagem nas escolas estamos imersos nesse universo digital, que não é propriamente o melhor para a aprendizagem e um uso mais correto da língua. Penso que isso tem uma grande influência”, disse ainda.
João Barrento nasceu a 26 de abril de 1940 em Alter do Chão, distrito de Portalegre. Estudou Filologia Germânica na Faculdade de Letras de Lisboa, onde se formou em 1964 com uma dissertação intitulada A Palavra e o Gesto sobre a obra do dramaturgo inglês Harold Pinter, ao qual aludiu no discurso de agradecimento do Prémio Camões.
Entre 1965 e 1969 foi Leitor de Português na Universidade de Hamburgo, e depois de 1986 Leitor de Língua Alemã e Docente de Literatura Alemã e Comparada na Faculdade de Letras de Lisboa. De 1986 a 2002 foi professor de Literatura Alemã e Comparada e de História e Teoria da Tradução na Universidade Nova de Lisboa.
O seu trabalho na área da literatura alemã compreende obras que vão da Idade Média à atualidade, e em todos os géneros literários. Tradutor de Goethe, Hölderlin, Kafka, Musil, Walter Benjamin, Brecht, é ainda especialista na obra da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, de que é responsável pela divulgação e pelo espólio.
Enquanto autor, destacam-se Breviário do Silêncio (Alambique), conjunto de textos ensaísticos, bem como a publicação de obras em torno de diversos autores, como Goethe ou Walter Benjamin. Em 2023 publicou o livro Aparas dos Dias — A escrita na ponta do lápis (Companhia das Ilhas).
No discurso no Mosteiro dos Jerónimos, Barrento partilhou que ao longo da carreira nunca deixou “de ser aprendiz nos domínios do ensaio, crónica, diário ou tradução”.
A tradução como trabalho de criação
“É a primeira vez que o Prémio Camões homenageia um tradutor”, notou Inocência da Mata, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e membro do júri a quem coube dirigir algumas palavras sobre o galardoado. “Porque foram necessárias 35 edições para um júri chegar à conclusão que a tradução era uma atividade fundamental para a robustez de uma língua? Talvez os jurados não tivessem a consciência de que a tradução é também trabalho de criação”.
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Para Inocência da Mata, João Barrento é uma “figura ilustre no panorama literário português, conhecido pelo seu trabalho meticuloso como tradutor, crítico e ensaísta”. “A sua dedicação à tradução de obras complexas e a sua análise crítica profunda fazem dele um dos pilares da literatura contemporânea em Portugal”, disse sobre aquele que considera ser “um tradutor de referência”.
“As suas traduções são elogiadas pela precisão e pela capacidade de capturar a natureza e as nuances dos textos originais”, frisou. “A importância da tradução transcende simplesmente converter palavras de um idioma para o outro. Ela é uma ponte que conecta culturas, amplia o acesso a ideias, pensamentos e histórias que de outra forma estariam confinados a uma única língua.”
Enumerando os vários prémios e homenagens que foram prestados a Barrento nas últimas décadas, Mata remataria da seguinte forma: “Faltava-lhe apenas o Prémio Camões. Esta distração foi agora corrigida”.
Para o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, “a obra de João Barrento é um exemplo de resistência ao indiferentismo desmemoriado”. “O facto de ter vencido o Camões é significativo de um entendimento alargado deste prémio”, sublinhou, reforçando o seu entendimento da “tradução como literatura”. “Reconhecido pelos seus pares, o público da literatura deve-lhe boa parte do presente”, disse ainda.
Já a ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, optou por destacar o papel de Barrento não apenas “como tradutor e ensaísta, como escritor e crítico”, mas também “como pensador do mundo e do ato da escrita”. “Homenagear João Barrento é reconhecer um cidadão empenhado, comprometido, um defensor da liberdade dos seus usos do pensamento crítico e um professor de várias gerações”, disse ainda. “Foi por ele e pela sua obra que passou por nós toda uma revolução cultural”, sublinhou.
Margareth Menezes, ministra da Cultura do Brasil, participou na cerimónia através de uma gravação em vídeo, tal como no ano passado, desta vez escolhendo “destacar o trabalho como tradutor” do premiado, que “rompe fronteiras e amplia horizontes”, disse num curto discurso que terminou lançando um repto: “Mais livros e menos armas”.
João Barrento: “A literatura foi contaminada pela acumulação de atualidade”
O Prémio Camões foi instituído por Portugal e pelo Brasil em 1989 e nesse ano foi atribuído ao escritor português Miguel Torga. Com cada atribuição, de caráter anual e com um valor pecuniário de 100 mil euros, é prestada uma homenagem à literatura, recaindo a escolha num escritor cuja obra contribua para a projeção e reconhecimento da língua portuguesa.
Em 2022, o Prémio Camões foi para o ensaísta, romancista, professor, poeta e tradutor brasileiro Silviano Santiago. No ano anterior, a distinção coube à escritora moçambicana Paulina Chiziane, a primeira pessoa negra a receber a distinção. Entre o grupo de premiados constam nomes como José Saramago, Sophia de Mello Breyner Andresen, Agustina Bessa-Luís e Chico Buarque.