Semanas antes da incursão, Sumy, a cidade ucraniana mais próxima da fronteira com a Rússia, encheu-se de soldados à procura de abrigo. Os habitantes estranharam a permanência, devido à ausência de opções de aluguer na zona ou de algum sítio livre onde os militares pudessem pernoitar. Na altura teria sido fantasioso antever o que se preparavam para fazer, ou pelo menos, o sucesso que teriam na tarefa de conquistar território russo, a poucos quilómetros dali. Mas para surpresa de todos, principalmente do Kremlin, a 6 de agosto, deu-se a incursão em Kursk, que ainda dura.
A surpresa foi comum a todos, tanto para os russos que agora se encontravam no papel de invadidos como para os ucranianos que há mais de dois anos tentam repelir a invasão russa no país. “Na altura, foi tudo um borrão. Só mais tarde, quando saímos, é que nos apercebemos de onde estivemos e o que estivemos a fazer”, testemunhou Artem, um soldado ucraniano, ao The Guardian, quatro semanas depois do início da incursão de Kiev em território russo.
O jornal britânico, em reportagem a partir de Sumy, encontrou Artem e mais dois militares de uma equipa de operações especiais ucraniana numa paragem à beira da estrada, poucas horas depois de terem deixado o território russo pela primeira vez em quatro semanas. O carro em que seguiam já não tinha para-brisas traseiro, atingido por explosivos no dia anterior, resultado de um ataque com drone russo.
No interior da viatura militar seguiam documentos escondidos em caixas no banco de trás, que incluíam ficheiros do Ministério da Administração Interna russo e ordens militares, apreendidos em edifícios oficiais em Sudzha, a cidade no centro da operação surpresa da Ucrânia em Kursk, e em trincheiras russas abandonadas nas proximidades. Seriam levados para Kiev, a seis horas de carro dali.
Outro militar, que o The Guardian não identificou, admitiu que as próprias tropas ucranianas não foram avisadas do que estava para vir. “Pensámos que estávamos a ser transferidos para aqui [Sumy] para realizar um trabalho defensivo contra uma possível incursão russa”, afirmou.
O fator surpresa teria de ser mantido até ao final, mesmo que para tal fosse necessário manter os militares ucranianos às escuras. Em declarações ao New York Times, Franz-Stefan Gady, um analista militar austríaco, não tem dúvidas de que a operação foi bem planeada. No terreno, estão “meios de guerra eletrónica que se mobilizam para bloquear o sistema de comando e controlo russo. Há defesas aéreas que criam bolhas seguras em torno do avanço ucraniano. E os carros de combate são bastante eficazes e avançam a um ritmo constante”.
A chave da incursão não está no ataque e na conquista de território russo, que Kiev tem vindo a insistir não ter sido o principal objetivo daquela ação militar. O grande foco das forças ucranianas passava por conseguir forçar Moscovo a desviar tropas dentro do seu território, fazendo com que a mobilização russa para Kursk trave a ofensiva em territórios ucranianos como o Donbass e Kharkiv.
“Trato-os como quero que os nossos prisioneiros sejam tratados na Rússia”. Ucrânia quer evitar infligir terror de que foi alvo
Dezenas de veículos militares continuam a ocupar a estrada que liga Sumy à fronteira, com soldados ucranianos a entrar na Rússia em todo o tipo de veículos, desde motas a tanques, descreve o The Guardian. Ao falar com militares que acabaram de deixar território russo ou que se encontram de prevenção em Sumy, o jornal captou o ambiente que se faz sentir nos territórios agora ocupados pela Ucrânia.
Na semana passada, o país reivindicou o controlo de cerca de 1.300 km2 de território russo, compreendendo 92 povoações, na sua maioria pequenas aldeias, mas incluindo a cidade de Sudzha, onde viviam 5 mil pessoas antes da incursão.
“Dizemos-lhes que as forças ucranianas tomaram a cidade de Kursk e estão a marchar para Moscovo, e que é altura de aprenderem ucraniano”, afirmou, em tom de brincadeira, um soldado ucraniano que esteve recentemente na cidade. Garante que não estão a infligir o mesmo terror que os ocupantes russos infligiram aos habitantes das cidades ucranianas a partir de fevereiro de 2022.
Zelensky reivindica controlo de 1250 quilómetros quadrados e 92 localidades em Kursk
Outro testemunho vindo do interior da Rússia ocupada dá conta de que, à exceção dos drones, os soldados ucranianos estão sozinhos no território. Parte da justificação está nos militares russos que foram feitos prisioneiros e colocados num centro de detenção na região de Sumy. O The Guardian falou com vários detidos no local, mas não os cita diretamente devido às convenções internacionais sobre prisioneiros de guerra.
Chegou à fala, no entanto, com o diretor-adjunto da prisão. “Como cidadão ucraniano, desprezo-os, mas trato-os como quero que os nossos prisioneiros sejam tratados na Rússia”, disse Volodymyr, que olha para estes prisioneiros russos como uma moeda de troca para libertar ucranianos. Um dos principais objetivos da operação sempre foi esse e a Ucrânia afirma ter já capturado cerca de 600 soldados russos na região de Kursk, muitos dos quais recrutas.