O Bairro do Zambujal, na Amadora, vive agora, um mês depois da trágica morte de Odair Moniz e dos incidentes que lhe sucederam, dias mais calmos, dentro da rotina, procurando seguir em frente.

Acho que o que aconteceu aconteceu, já passou. Agora temos que esquecer e seguir para a frente“, diz à Lusa António, que ali comprou casa há três anos e mora com os filhos, vindo da Cova da Moura.

Foi precisamente no bairro vizinho que Odair Moniz, cidadão cabo-verdiano de 43 anos, foi baleado por um agente da PSP na madrugada de 21 de outubro. A sua morte deu origem a uma onda de tumultos na Área Metropolitana de Lisboa durante vários dias, com autocarros, automóveis, motos e caixotes do lixo incendiados.

Um mês depois, no Zambujal, as folhas caídas das árvores percorrem as ruas em maior quantidade do que o número de pessoas que por elas caminha. É um dia normal no bairro, às portas de Lisboa, com os moradores nos seus empregos e os mais jovens na escola.

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Susana Tavares, mentora na Academia do Johnson, que trabalha com crianças e famílias em situação de vulnerabilidade social no bairro, refere que o trabalho dos voluntários continua no apoio diário aos jovens e crianças entre os 8 e os 15 anos.

“Diariamente, quando as crianças chegam da escola, lancham e depois são distribuídos pelas várias salas e espaços que temos, onde têm o apoio escolar: Matemática, Português, Inglês”, explica, adiantando que vão ter também o apoio a Físico-química, disciplina em que “os mais velhos têm muita dificuldade”.

A grande estrela da Academia para os jovens é o futsal. Há seis equipas de vários escalões etários, algumas das quais federadas, mas há também muay thai, andebol ou atletismo.

No entanto, não são só os jovens que têm a atenção dos mentores: Susana Tavares lembra também a existência do grupo de cidadania participativa com a comunidade sénior: “Passam muito tempo sozinhos dentro de casa e, das 15h00 às 17h00, estão connosco a fazer atividades como costura, pintura, passeios, visitas a museus, ou seja, [estão connosco] para não passarem tanto tempo sozinhas dentro de casa, é o combate à solidão.”

À porta de um café nas proximidades, João Gonçalves, de 67 anos, reconhece que já viveu “coisas boas e coisas más” no bairro que escolheu para viver em 2015. Nas suas costas encontra-se um dos muitos murais do Zambujal, retratando o cuidar e respeitar da terra, as hortas urbanas, a continuidade de saberes entre gerações.

“O que eu encontro um bocadinho mal aqui é ao nível da educação das crianças, que há muitos ‘abandonados’, e agradeço muito o que a associação do Johnson faz aqui. Se um dia a associação para, não sei como vai ser”, afirma.

Para o morador, parte da solução de muitos dos problemas passa pela educação das crianças, por “terem comunicação com a polícia”, com deslocações dos agentes às escolas para falarem com os miúdos.

“Hoje as crianças veem a polícia como estão a ver um inimigo, mas não podemos viver sem a polícia. Se desde logo as crianças souberem quais os direitos que têm, mas também quais os deveres, as coisas já vão acalmar. Mas isso é um trabalho muito grande. Espero ver isso antes de morrer”, sublinha.

Passados os tumultos de outubro, está “tudo normal, como antigamente, sem complicação, tranquilo”. João reconhece que queimar coisas “não resolvia nada” e que as pessoas só estavam a prejudicar as pessoas do bairro, mas “ninguém deve ter pensado nisso”.

“Era fazer uma manifestação pacífica e ir, em frente da esquadra da polícia, pacificamente, porque guerra não dá resultado”, sustenta.

Também segundo José António, morador no bairro há 46 anos, o que aconteceu no Zambujal, onde um grupo de jovens incendiou um autocarro da Carris Metropolitana, um dia depois da morte de Odair, já passou: “está tudo calmo agora” e ao fim do dia “já não se passa nada, nem anda ninguém pela rua”.

“Quando houve aqui esse problema de incendiarem os caixotes e essas coisas todas, cortaram aqui os transportes, já não passavam aqui, davam a volta ao contrário. Portanto, aconteceu, mas agora já está tudo na normalidade”, conta.

Completamente calmo e sem grandes incidentes – é assim que o presidente da Junta de Freguesia de Alfragide descreve o ambiente agora vivido, depois de o Zambujal ter estado no centro das notícias.

Houve dois dias de incidentes. Passados os dois dias deixou de haver alguma coisa e mesmo nos dois dias em que houve os incidentes, no meu caso concreto e dos trabalhadores da junta, estivemos lá logo na segunda-feira a fazer a limpeza e sem qualquer problema”, refere António Paulo.

O autarca é perentório em afirmar que se trata de “um bairro perfeitamente pacífico”, onde “normalmente não há problemas”, e lembra que os moradores “são boas pessoas”.

Perante certos incidentes, diz, “é natural que as pessoas reajam”. “A forma como reagiram não foi a melhor”, mas houve manifestações no bairro “completamente pacíficas”, sem problemas com a polícia, sublinha.

“E penso que é assim que as pessoas devem agir, manifestar as suas discordâncias, terem o direito à indignação, como já uma pessoa uma vez falou. Mas não atuarem daquela forma como agiram, porque isso revolta as pessoas contra elas próprias, e mesmo no bairro isso notou-se”, destaca.

No mais recente levantamento feito no Zambujal, em 2018, foram registados “entre quatro e cinco mil moradores”, mas António Paulo acredita que agora o número se situe nos cinco mil, tendo em conta que nos últimos três anos a junta tenha passado “centenas e centenas” de atestados de residência.

O café que Odair Moniz explorava com a mulher no Zambujal encontra-se de portas fechadas. No chão jazem algumas velas e flores. Já nas grades que cobrem as janelas, entre um ‘Olá’ de uma marca de gelados, estão penduradas faixas onde se pode ler “Justiça para Odair”, “Bairro do Zambujal nunca te esquecerá. Eternamente” e “a injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar”.

Pelo bairro há murais que retratam os seus habitantes e que são um exemplo de integração social pela arte, num projeto inspirado nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável propostos pela ONU — no mesmo bairro em que há paredes com palavras de ordem, mas também onde se destacam valores como “pratica o bem”.

Entretanto, uma campanha de angariação de fundos lançada pela família de Odair Moniz permitiu já recolher cerca de 29.000 euros.

De acordo com a versão oficial da PSP, Odair pôs-se “em fuga” de carro depois de ver uma viatura policial e despistou-se na Cova da Moura, onde, ao ser abordado pelos agentes, “terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca”.

A associação SOS Racismo e o movimento Vida Justa contestaram a versão policial e exigiram uma investigação “séria e isenta” para apurar responsabilidades, considerando que está em causa “uma cultura de impunidade” nas polícias.

Nos tumultos registados em outubro somaram-se cerca de duas dezenas de detidos e outros tantos suspeitos identificados, além de um ferido grave (o motorista de um autocarro).