Pela primeira vez na história, uma mulher vai liderar um dicastério da Cúria Romana — o governo da Igreja Católica a nível global. O Papa Francisco anunciou esta segunda-feira a nomeação da freira italiana Simona Brambilla, de 59 anos de idade, como prefeita do Dicastério para a Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, sucedendo no cargo ao cardeal brasileiro João Braz de Aviz.

A Cúria Romana é o conjunto dos órgãos administrativos da Santa Sé e é responsável pela orientação da Igreja Católica a nível mundial — podendo comparar-se, genericamente, ao governo de um país. Chefiada pelo Papa, a Cúria Romana é composta por diversos departamentos temáticos, incluindo a Secretaria de Estado (equivalente a um Ministério dos Negócios Estrangeiros) e os vários dicastérios (que funcionam como se fossem os ministérios de um governo).

Durante séculos, os órgãos da Cúria Romana foram exclusivamente liderados por cardeais. Desde a sua eleição, em 2013, o Papa Francisco não escondeu a sua intenção de levar a cabo uma profunda reforma institucional da Cúria Romana, tendo para isso constituído um grupo de trabalho logo no início do seu pontificado. A reforma foi finalmente publicada em junho de 2022 e traduziu-se em profundas alterações no modo de funcionamento do governo central da Igreja. Uma das mudanças mais significativas foi a decisão de deixar de exigir que os cargos de topo dos dicastérios da Cúria Romana sejam ocupados exclusivamente por clérigos, passando a ser também a poder ser ocupados por leigos. O Dicastério para a Comunicação, liderado pelo antigo jornalista italiano Paolo Ruffini, foi o primeiro a ter um prefeito não-cardeal.

Dois anos e meio depois da reforma, o Papa Francisco nomeou pela primeira vez uma mulher para o cargo de prefeita de um dicastério — um passo que era esperado por muitos desde a abertura daqueles cargos aos leigos. Simona Brambilla, uma religiosa italiana que pertence à congregação dos Missionários da Consolata, vai passar a liderar o Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, organismo responsável pela supervisão de ordens e congregações religiosas a nível mundial.

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Nascida em Monza, na Lombardia, em 1965, Simona Brambilla começou a sua vida profissional como enfermeira, antes de entrar na congregação dos Missionários da Consolata. Na vida religiosa, licenciou-se e fez o doutoramento em Psicologia na Universidade Gregoriana, em Roma e, como freira, Simona Brambilla teve um percurso como missionária em Moçambique. Entre 2011 e 2023 foi a superiora-geral do ramo feminino da congregação.

Em outubro de 2023, Brambilla já tinha sido escolhida pelo Papa Francisco para ocupar o cargo de secretária do Dicastério, altura em que se tornou a segunda mulher na história a chegar àquele nível na hierarquia da Cúria Romana.

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Desde que foi eleito, o Papa Francisco tem reforçado a presença de mulheres nos cargos de liderança no Vaticano. À frente de uma Igreja amplamente criticada por não permitir que as mulheres recebam a ordenação sacerdotal (o que durante décadas as impediu, por inerência, de aceder a vários lugares de poder), Francisco já nomeou várias mulheres para cargos de responsabilidade e fez história quando, pela primeira vez, permitiu que os leigos, incluindo mulheres, votassem no Sínodo dos Bispos. Ao mesmo tempo, o Papa colocou uma mulher como subsecretária do Sínodo: a irmã Nathalie Becquart, que chegou a ser considerada a mulher mais poderosa do Vaticano.

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Ainda assim, o Papa Francisco tem resistido à ideia de resolver o problema da falta de igualdade de género na Igreja com recurso à ordenação de mulheres. Como explicou numa entrevista ao Observador o biógrafo de Francisco, Austen Ivereigh, Francisco coloca o seu foco noutro ponto: em combater a associação entre poder e clero. O Papa Francisco tem repetido que um dos mais graves problemas da Igreja contemporânea é o clericalismo — uma visão distorcida do poder e da autoridade centrada na ideia de que o clero ordenado constitui uma elite de poder e não uma vocação de serviço. Para o Papa, o clericalismo é, aliás, uma das principais raízes das práticas de encobrimento da crise dos abusos sexuais de menores na Igreja. No entender de Francisco, o primeiro passo deve ser abrir os cargos de poder aos leigos e, assim, também às mulheres — em vez de “clericalizar” as mulheres.

“O objetivo disto é permitir às mulheres que desafiem aquilo que são, muitas vezes, estruturas muito clericalistas. Desafiar o pensamento na liderança da Igreja. Quando ele diz que há um perigo em clericalizar a voz das mulheres é que se não se permitir às mulheres que tenham a sua voz distinta, os seus contributos distintos, então elas rapidamente se tornariam parte da mesma estrutura clericalista”, resumia Ivereigh ao Observador.

Também em entrevista ao Observador, a religiosa francesa Nathalie Becquart, subsecretária do Sínodo dos Bispos e uma das mulheres com um cargo mais elevado na hierarquia do Vaticano, considerou que o Papa Francisco estava a seguir um caminho correto ao dar prioridade ao combate ao clericalismo. “O Papa Francisco está a abrir um caminho interessante com o que está a fazer no Vaticano, que é desconectar a liderança da ordenação”, afirmou. “Ele já nomeou um homem leigo como prefeito do Dicastério para a Comunicação e disse que também podia ser uma mulher.” No entender de Becquart, o combate ao clericalismo é prioritário na luta pelo objetivo central: a “participação maior das mulheres nos processos de tomada de decisão”.

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A nomeação de Simona Brambilla para o cargo de prefeita do Dicastério para a Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica parece encaixar-se nesta linha de pensamento defendida pelo Papa.

Ainda assim, não faltam vozes dentro da Igreja Católica que defendem que é possível dar o passo seguinte rumo à ordenação sacerdotal de mulheres. Numa entrevista recente ao Observador, o eminente teólogo checo Tomáš Halík garantia não conseguir “encontrar objeções teológicas sérias contra a ordenação de mulheres”, uma ideia também defendida pela teóloga espanhola Cristina Inogés Sanz (uma das primeiras mulheres a votar no Sínodo dos Bispos). “Eu sou partidária do sacerdócio feminino. Não há razões teológicas que o impeçam”, afirmou, numa entrevista ao Observador em que também alertou que é necessário que a Igreja seja devidamente preparada antes de esse passo ser dado. Em Portugal, o bispo José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal, também já afirmou, em declarações ao Observador, que é relativamente consensual que “não há impedimentos teológicos” à ordenação de mulheres.

Cristina Inogés Sanz, uma das primeiras mulheres a votar num Sínodo dos Bispos. “Não há razões teológicas que impeçam” ordenação de mulheres

No último Sínodo dos Bispos, que se concluiu em Roma em outubro de 2024, o tema da ordenação diaconal de mulheres chegou a estar em cima da mesa, mas foi um dos assuntos que o Papa Francisco remeteu para grupos de trabalho especializados, que deverão apresentar as suas conclusões até junho deste ano.

Papa coloca bispo progressista como cardeal de Washington

Nas nomeações conhecidas esta segunda-feira encontra-se também a escolha do cardeal norte-americano Robert McElroy para o importante cargo de arcebispo de Washington, nos Estados Unidos. McElroy, até aqui bispo de San Diego (na Califórnia), já tinha estado no centro de uma polémica quando foi elevado a cardeal pelo Papa Francisco em 2022 — um caso paradigmático de como o Papa argentino tem usado as nomeações cardinalícias como forma de influenciar o futuro da Igreja depois do seu pontificado.

Bispo de uma pequena diocese suburbana, cujo bispo habitualmente não era elevado a cardeal, Robert McElroy era conhecido pelas suas visões progressistas e pelos vários confrontos com a ala mais conservadora da Igreja Católica nos EUA. Em 2022, quando Francisco anunciou os nomes dos novos cardeais, não incluiu na lista o arcebispo de Los Angeles, José Gomez (um cargo que habitualmente recebia a elevação cardinalícia), mas incluiu o nome de McElroy, decisão recebida com perplexidade pelos mais conservadores.

Francisco rompia com a prática instituída de várias formas: ao deixar de fora um arcebispo que esperava a nomeação para cardeal, ao elevar a cardeal um bispo de uma diocese menor e ao criar uma situação complexa na geopolítica eclesiástica, já que San Diego faz parte da província eclesiástica de Los Angeles e o arcebispo Gomez era, para todos os efeitos, o arcebispo metropolitano acima do agora cardeal McElroy.

Um ano depois, o Papa Francisco tomou uma decisão semelhante em Portugal, ao elevar a cardeal o bispo Américo Aguiar (nomeado para a diocese de Setúbal) e ao não elevar a cardeal o atual patriarca de Lisboa, Rui Valério.

Com a saída do atual cardeal arcebispo de Washington, Wilton Greegory, o Papa Francisco coloca assim o seu forte aliado Robert McElroy à frente de umas dioceses mais poderosas do mundo.

“Se olhar para a reforma que o Papa Francisco tem feito do colégio dos cardeais, percebe que a mudança mais interessante foi a nomeação de bispos e cardeais que estão nas margens da Igreja”, explicava em entrevista ao Observador o biógrafo do Papa Francisco. “Não apenas do mundo, mas da Igreja. Escolheu bispos com dioceses muito pequenas, às vezes com uma população católica muito pequena, em zonas de guerra ou nas fronteiras do conflito interreligioso.”

No entender de Austen Ivereigh, essas escolhas vão “transformar a dinâmica do próximo conclave”, forçando os cardeais a focarem-se “muito mais em situações concretas da Humanidade, em vez de se embrenharem em questões institucionais e ideológicas”.