Como era sábado e até estava prevista chuva, tinha planeado ficar a dormir até mais tarde, mas acabou por se levantar cedo, entre as 9h00 e as 10h00, depois de ouvir o pai pedir à mãe que ligasse para a Proteção Civil. Tinha havido uma enxurrada, estava tudo bem mas era preciso que viessem limpar os caminhos, a situação estava caótica, até o ribeiro que ali passava ao lado, quase sempre seco, tinha transbordado.
Dúlio Freitas, então com 19 anos, saiu da cama e nem trocou de roupa, foi diretamente lá para fora, onde já estava também o irmão mais velho, a ajudar o pai a avaliar os estragos. “Estava na entrada de casa quando veio a segunda enxurrada”, recorda agora, uma década depois. “Ainda tentei fugir mas fui apanhado. Só me lembro de ouvir um barulho enorme e de o meu irmão gritar para eu e o meu pai fugirmos. Quando olhei para cima vi uma espécie de onda, com pedras e árvores inteiras à frente. Corri e ainda tentei agarrar-me à porta de casa mas a força da água era muita e não consegui aguentar muito tempo. Lembro-me de ser levado para dentro do ribeiro, a água levou uma parte da casa e levou-me a mim também. A única coisa em que pensei antes de perder os sentidos foi que ia morrer”, conta com acentuado sotaque ilhéu ao Observador.
Aconteceu a 47 pessoas naquele 20 de fevereiro de 2010, o fatídico dia em que na Madeira, só durante a manhã, choveu tanto como costuma chover o inverno inteiro, mas Dúlio Freitas, hoje a contar a história, não foi obviamente uma das vítimas mortais do aluvião que há dez anos assolou a ilha, destruiu a baixa do Funchal e deixou o país inteiro em choque — e de luto oficial durante três dias. Durante sete anos, até os incêndios de 2017 terem provocado mais de 100 mortos, as cheias na Madeira foram a pior tragédia registada no país, pelo menos desde que a ponte Hintze Ribeiro colapsou e fez 59 vítimas fatais em Entre-os-Rios.
Dúlio Freitas, que ainda hoje ostenta as marcas das cheias, nunca saberá ao certo quanto tempo ficou inconsciente depois de ter sido arrastado pela força da lama à porta de casa, na Corujeira de Dentro, lugar da freguesia do Monte, nas zonas altas do Funchal. Só se recorda de que ainda demorou alguns instantes, depois de abrir os olhos, a perceber que estava debaixo de um carro e que tinha a perna partida, daí não conseguir mexer-se.
Desesperado, gritou por ajuda e foi repetindo o mantra em silêncio: “Se cheguei até aqui, agora também não vou morrer”. Só foi encontrado cerca de quatro horas mais tarde. “As pessoas que apareceram queriam levantar o carro mas disse-lhes para não mexerem em nada, podia ceder e ficava ali esmagado. Fui cavando até que consegui sair. Parti o fémur em três partes, mas na altura não tinha dores, só senti dores depois.”
Também só depois, enquanto uns procuravam entre o entulho uma porta que lhe pudesse servir de maca e outros iam buscar o carro de transporte de material de construção onde o haviam de levar ao encontro dos bombeiros, que as estradas, obstruídas ou destruídas, impediram de chegar até ali, é que soube que estava a três quilómetros de casa.
“Fui arrastado no meio de lama, paus e pedras, fiquei com bastantes cortes no corpo, nas costas, na cabeça, e ainda tenho uma cicatriz grande na testa mas nada disso foi suficiente para acontecer o pior. Houve outras duas pessoas que morreram na mesma enxurrada. Foram arrastadas muito menos do que eu mas infelizmente não tiveram a mesma sorte”, analisa Dúlio Freitas, há dez anos estudante de engenharia civil, hoje chef de cozinha, ainda a morar com os pais, que escaparam incólumes, na mesma casa na freguesia funchalense do Monte.
Dúlio esteve três semanas internado, foi operado duas vezes, desenvolveu infeções na garganta e nos ouvidos por causa da lama que engoliu, fez fisioterapia durante nove meses e viu a perna que partiu encurtada 3 centímetros — ainda hoje coxeia, ainda hoje espera pela derradeira cirurgia que deverá “endireitá-la um pedacinho mais”. Ainda assim, insiste em olhar para o lado positivo: “Às vezes as pessoas dizem-me que tive azar. Costumo dizer que tive é sorte, azar tinha se tivesse morrido! Tive sorte e também uma nova oportunidade para viver e tenho de agarrar essas coisas ao máximo.”
Do 20 de fevereiro a 20 de novembro — nove meses no hospital
Quando finalmente os bombeiros o deixaram nas urgências do Hospital Dr. Nélio Mendonça, no centro do Funchal, o plano de resposta a situação de catástrofe já tinha sido ativado há algumas horas.
Eram apenas 9h30 quando, alarmado pela chuva que não parava de cair e estava já a fazer transbordar as três principais ribeiras do Funchal e a arrastar troncos, rochas e toda a espécie de detritos acumulados pelas serras abaixo, o Governo Regional então presidido por Alberto João Jardim deu o alerta a Pedro Ramos, então diretor do serviço de urgência. “Como era sábado, estava na medicina convencionada, ia operar, na Clínica da Sé. Fiz grande parte do caminho em contramão, orientado pela Polícia de Segurança Pública, para conseguir chegar rapidamente e em segurança ao hospital. Nessa altura a água já ultrapassava a altura do passeio”, recorda o agora Secretário Regional de Saúde e responsável pelo Serviço Regional de Proteção Civil.
“A partir do momento em que tivemos noção de que seria uma situação cuja dimensão iria aumentar ao longo das horas seguintes, mobilizámos cerca de 200 profissionais, não só do hospital mas também dos cuidados primários: médicos, enfermeiros e pessoal da área não clínica. A partir das 11h00 começámos a receber doentes e meia hora depois entrámos no plano de resposta a situação de exceção. Já tínhamos tido uns avisos da Proteção Civil e do Instituto Português do Mar e da Atmosfera; e em São Vicente e na Ribeira Brava já tínhamos tido duas situações prévias. Mas no dia 20 de fevereiro um acumular de cinco meses de pluviosidade extrema levou ao que aconteceu. Tudo o que era lamas, detritos, troncos, tudo o que tinha sido acumulado nas serras do Funchal foi conduzido pela natureza pelas três principais ribeiras até ao centro da cidade. E a Madeira, que é uma ilha, foi inundada não por água vinda do mar, mas da serra”, detalha o médico ao Observador.
Entre as 11h00 e as 21h00, naquela que foi considerada a primeira leva de doentes, chegaram ao hospital, pelos meios próprios ou trazidos por uma das 40 ambulâncias existentes na ilha, 136 doentes. Desses, 120 tinham ferimentos relacionados com as cheias; no final do dia, só 30 não tinham ainda tido alta. “Houve gente que desceu as artérias envolvidas no caudal da água e foi fazendo ferimentos e fraturas nos vários pontos de embate, nos veículos, nas árvores, nas portas das casas, nas garagens, houve várias intervenções, essencialmente do foro cirúrgico e do foro ortopédico”, recorda o médico.
Alguns dos que ficaram no hospital, como Dúlio Freitas, ficaram durante muito, muito tempo: “Como eram ferimentos provocados por detritos, por lama, por impurezas, essas pessoas tiveram infeções graves, fasciites nectrotizantes, que envolvem os membros onde as feridas estavam localizadas, e tiveram muitos dias de internamento. O 20 de fevereiro não foi apenas um dia, para algumas pessoas foi o princípio de uma série de intervenções cirúrgicas, uma série de tratamentos e de internamento prolongado. A doente que esteve mais tempo internada só teve alta no dia 20 de novembro de 2010. Veio na enxurrada, para além de várias fraturas e de feridas extensas ao longo de todo o corpo, que infetaram, foi submetida a várias cirurgias e tratamentos e teve depois super infeções provocadas pelo ambiente hospitalar. Esteve muitos meses nos cuidados intensivos mas conseguimos dar-lhe alta”, congratula-se Pedro Ramos.
Depois houve a parte menos feliz, a dos mortos, que encheram as primeiras páginas de jornais de todo o país e da Europa e tiveram no homem, taxista e pai de dois gémeos de apenas 6 anos, encontrado dois dias depois das cheias coberto de lama ao volante do Opel Corsa azul da família, a imagem mais chocante. No dia do aluvião, saiu de casa rumo ao Monte, para ver como estava uma das propriedades da família. Acabou por ser arrastado desde lá, do alto, pelas ribeiras que encheram e transformaram as estradas em rios, e acabou por se despenhar junto à Estrada Luso-Brasileira, entre casas e debaixo de lama, rochas e troncos de árvore.
Houve mais, muitos mais, recorda Marcelo Gouveia, membro do executivo da Junta de Freguesia de São Roque e, na altura, também vice-presidente da ASA, a Associação de Desenvolvimento de Santo António, que apoiou a reconstrução de 401 habitações danificadas ou destruídas no 20 de fevereiro.
“Em São Roque houve um morto, um senhor que estava no logradouro da sua habitação, que ficava subjacente a um pequeno ribeiro. O chão cedeu e o senhor foi com ele para dentro do ribeiro. Também em São Roque, uma rapariga estava a atravessar uma ponte, com um bebé no banco traseiro, quando a ponte cedeu e o carro caiu para dentro de um ribeiro. Era tão estreito que o carro ficou de lado. Nesse caso não aconteceu o pior porque alguns populares saltaram para dentro do ribeiro e salvaram-nos”, vai enumerando.
“Depois, em Santo António, no Sítio do Laranjal, houve aquele caso do viaduto que estavam a criar, onde a grua caiu. Morreram cinco pessoas: saíram da casa onde estavam, que era do sogro de um antigo funcionário meu, no Clube Desportivo de São Roque, e foram para a garagem de um vizinho, achavam que era mais seguro, porque não estava debaixo da ponte, mas a grua acabou por cair e eles morreram”, recorda, numa referência às que ficaram conhecidas como as vítimas da estrada Cota 500 — uma delas, uma criança de apenas 5 anos.
Às 16h do sábado, dia 20 de fevereiro, quando foi feito o primeiro comunicado à imprensa, já havia na morgue do Hospital do Funchal 14 cadáveres, número que até segunda-feira não parou dramaticamente de subir. Foram tantas as mortes declaradas que o Instituto de Medicina Legal da Madeira não teve outra opção senão pedir ajuda ao continente, de onde foram enviados três médicos legistas; e ativar o necrotério da ANA – Aeroportos de Portugal, que sob a pista do aeroporto local tinha capacidade para receber até uma centena de corpos, muito mais do que a morgue do Dr. Nélio Mendonça, que já tinha atingido a capacidade máxima.
Ao todo, foram contabilizados, além das 47 vítimas fatais, quatro desaparecidos, 250 feridos, 600 desalojados e 1080 milhões de euros de prejuízo, sobretudo no Funchal, na Ribeira Brava e no Curral das Freiras, que durante dois dias ficou completamente inacessível por terra — e, como todas as zonas afetadas, sem luz, sem água e sem telecomunicações. “Houve muita gente que não conseguiu chegar logo ao hospital, por isso é que falamos numa primeira e numa segunda leva de doentes, que só terminou uma semana depois. Durante uma semana tivemos gente que finalmente conseguiu sair de suas casas e veio ao hospital”, acrescenta Pedro Ramos.
Uma casa para 16 (à luz de velas de cemitério)
Foi o que aconteceu a Ricardo Rodrigues — com a diferença de que o vigilante da natureza, na altura com 39 anos, acabou por não precisar de assistência hospitalar, só esteve incomunicável durante 48 horas, longe de casa e da mulher, então grávida de dois meses.
Naquele sábado chovia mas os boletins meteorológicos também previam boas ondas, por isso nem pensou duas vezes antes de arrancar do Funchal para São Vicente, na parte norte da ilha — não é como se a surfar não fosse já ficar molhado. Ainda não eram 7h00 e já estava dentro de água, com o café e o pastel de amêndoa do costume a servir de pequeno-almoço. “Tinha combinado com uns amigos, mas há uma disputa muito grande para ver quem entra primeiro. Estive uma hora e meia dentro de água e estranhei não aparecer ninguém. Depois, ainda na água ouvi duas quebradas a cair, em terra, nuns terrenos com vinha que havia ali perto. Como tinha o carro ali parado, comecei a ficar preocupado e saí.”
Ia trabalhar, na Reserva Natural do Garajau, entre a Ponta do Lazareto e a Ponta da Oliveira, na parte sul da ilha, às 14h00. Às 10h00 pôs-se a caminho do Funchal, para ir a casa tomar banho e almoçar. “Quando comecei a subir para a Serra da Água, o caudal da ribeira já estava muito maior e o barulho era ensurdecedor, ouviam-se os tombos de pedras lá dentro. Passei o túnel, que tem quase 3 quilómetros, e quando cheguei ao lado da Ribeira Brava a coisa já estava mesmo caótica, deixou de ser uma viagem normal em tempo tempestuoso”, recorda. “A ribeira já transbordava em algumas curvas e quando cheguei à vila da Serra de Água percebi logo que já devia haver inundações, havia quebradas na estrada, com rochas a impedir o caminho. Fiz inversão de marcha à frente de uma garagem e tentei voltar para trás, para São Vicente. Menos de um quilómetro depois vi a estrada a abater e um carro a cair na ribeira; o homem que ia lá dentro conseguiu sair e o carro foi levado pela água.”
Percebeu imediatamente que estava encurralado mas não perdeu o sangue frio: “Entrei num café e disse às pessoas para começarem a tirar os carros, ninguém estava a ter noção do que se estava ali a passar, já não havia eletricidade, a estrada estava a ruir e caíam pedras enormes das encostas, mas as pessoas continuavam ali a beber poncha. Talvez por ser vigilante da natureza e passar muito tempo nas Desertas e nas Selvagens, tenho uma capacidade de análise diferente. Estávamos no meio de um vale muito profundo, com montanhas que vão quase até aos mil metros, olhávamos para cima e víamos cascatas brancas e castanhas a cair; às tantas já havia carros a serem arrastados na estrada e dentro da ribeira, que galgou as margens e tinha já o triplo da largura que era costume; ajudei aquelas pessoas a sair dali”.
Antes de as telecomunicações caírem, ainda conseguiu avisar o chefe de que não ia conseguir chegar a horas ao trabalho e telefonar para a mulher, a avisar que estava bem. Depois, foi bater à porta da casa que lhe pareceu a mais segura, no cimo de um cume mas a distância segura das encostas. Lá dentro, a proprietária, uma mulher de cerca de 70 anos, portuguesa emigrante em França, que ainda nem sequer se tinha apercebido do que se estava a passar, deu-lhe abrigo — a ele e a outras 15 pessoas. “Havia pessoas ali da zona, cujas casas estavam destruídas ou alagadas, umas partidas a meio, outras arrastadas pela ribeira, e um casal alemão, que às tantas começou a insistir que tinha de ir embora, porque tinha avião às 16h00. Estive quase para lhes tirar a chave do carro mas acabaram por perceber: ‘Se saem daqui se calhar não vão sobreviver’. Era uma coisa catastrófica e não estávamos muito seguros, mas ali acabámos por ficar durante dois dias e duas noites”, conta.
Sem eletricidade, água, televisão, rádio ou telemóveis ficaram completamente isolados, a assistir de camarote à catástrofe que se desenrolava logo ali à porta. “Quando estava no parapeito de uma das janelas, vi uma retroescavadora passar às cambalhotas na ribeira e depois um carro, todo fechado e embaciado, o que significa que havia uma fonte de calor lá dentro. Estavam pessoas lá dentro, agora se estavam vivas ou já eram só corpos isso nunca soube.”
Durante a noite, recorda, alumiados por dois candeeiros a petróleo e velas que alguns conseguiram ir buscar ao cemitério que havia ali perto, distribuídos pelas várias divisões da casa, de três andares, cave incluída, alguns tentaram dormir, outros rezaram, quase todos se deixaram tolher pelo pânico. “Havia ali uma energia… éramos umas formiguinhas contra aquilo tudo. Aquela ânsia de querer viver, as pessoas a tentarem salvar as suas coisas. Vi pessoas a quererem sair para irem às casas, salvar coisas… e ainda impedi alguns.”
Quando finalmente amanheceu domingo, substancialmente mais claro, começou a chegar ajuda, primeiro vieram as retroescavadoras, depois os camiões, a seguir André Pontes, um dos amigos com quem tinha combinado ir surfar na véspera. “No sábado saí de casa, no Funchal, dez minutos depois do que devia ter saído, deviam ser umas 7h10. Fui o primeiro carro a ficar no fim da via rápida, já estava lameiro, chovia imenso, até veio um bidão contra mim. Hoje tenho perfeita noção de que se tivesse saído às 7h00 já não estava aqui”, recorda ao Observador.
Na altura, como não fazia ideia da dimensão da catástrofe, o apelo das ondas falou mais alto, e pôs-se a caminho do lado nordeste. “A minha intenção era surfar, passei o Funchal, que estava bloqueado, e fui surfar para o Porto da Cruz, onde estava sol e boas ondas. Só quando alguém chegou à água e me disse o que estava a acontecer no Funchal e na Ribeira Brava é que tive noção do que estava a acontecer”, conta André, guia de montanha, na altura com 34 anos.
Sabendo que o amigo Ricardo estava desaparecido e incontactável, não conseguiu pregar olho e, nessa mesma madrugada, por volta das 2h00 ou das 3h00, resolveu pôr-se a caminho da Ribeira Brava para o encontrar.
Fez parte do trajeto à boleia do chefe dos bombeiros locais, o resto a pé. A destruição que testemunhou no caminho ficou-lhe gravada na memória: “Nos túneis tinha de ter o limpa pára-brisas no máximo, a pressão da água nas fissuras era tanta que havia cascatas lá dentro. Passei numa zona onde tinha morrido uma família de sete pessoas, só ficou um rapaz. E na Ribeira Brava, mesmo à frente da Taberna da Poncha, onde havia umas casas pequenas perto da ribeira, não ficou nada, a chuva levou tudo. Lembro-me de ver um senhor encostado a um muro de uma casa que ficou partida ao meio, mesmo dentro da ribeira. Havia populares a tentar ajudá-lo mas era impossível, havia muita lama, muita pedra e a água tinha muita força. Esse senhor ficou encostado ao muro durante um dia e meio, em pé. Soube depois que acabou por ser resgatado por helicóptero”.
Quando finalmente chegou à casa onde Ricardo estava abrigado, relaxou finalmente. Mas nem por isso descansou: em vez de descer a pé com André, Ricardo preferiu ficar na Serra de Água — e pediu ao amigo que fosse à Ribeira Brava comprar mantimentos e tentar telefonar aos familiares das pessoas ali retidas. “Não tínhamos a certeza de poder voltar logo no dia seguinte e não me sentia seguro de deixar ali a carrinha; no domingo de manhã vi uns rapazes a tirar rádios e outras coisas de dentro dos carros espatifados. Além disso, também me senti ligado àquelas pessoas todas, preferi ficar com eles e não aproveitar para sair assim sozinho. Acho que estava a dar alguma ajuda, nem que fosse pela maneira como falava com as pessoas, lhes dava indicações e as consolava”, explica-se Ricardo Rodrigues, uma década mais tarde.
“Deram-me números de telefone, uma lista de compras, e voltei à Ribeira Brava. Telefonei as pessoas, à mulher do Ricardo, fiz as compras e voltei a subir. Fiz o trajeto para cima e para baixo quatro vezes nesse dia, foram uns 20 quilómetros a pé, mas nem sequer senti dores, a adrenalina estava tão alta… Cheguei a casa à meia-noite. Já passei por duas tempestades grandes e duas médias na Madeira e nunca tinha visto nada assim tão intenso. Mas as alterações climáticas estão a notar-se cada vez mais, este ano houve pouca chuva e muito calor, o tempo está a mudar imenso”, diz o guia de montanha.
Ricardo Rodrigues, que na segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010, acabou finalmente por sair da vila da Serra de Água rumo a casa, no Funchal, fez em duas horas o percurso que habitualmente despacha em 20 minutos, assina por baixo mas alerta: mais do que o tempo, a grande culpada de desastres do género é a orografia da ilha. “Isto é tudo vales e montanhas, vai acima, vai abaixo, apesar de ter só 57 quilómetros de comprimento por 22 de largura, tem uma superfície de área gigantesca. Daqui a 20, 100 ou 200 anos há muita coisa na Madeira que não vai estar cá, pelo clima, pela ação humana e pela erosão. O ano passado houve uma derrocada na Calheta, caiu uma pedra num restaurante e matou uma cozinheira. Toda a gente já sabia que aquilo ia cair, só não se sabia quando.”
“Os Açores têm os sismos, nós temos as ribeiras”
Como em 2019, também a 20 de fevereiro de 2010, se levantaram imediatamente vozes contra as autoridades, sobretudo por parte das populações das zonas mais afetadas, mas as condições climatéricas acabaram por ser consideradas as únicas responsáveis pela catástrofe. “Foi uma chuva monumental. Com os índices de pluviosidade verificados, só um teórico de café pode pensar atribuir responsabilidades a quem quer que seja. Os Açores têm os sismos, nós temos as ribeiras”, chegou a dizer em conferência de imprensa Miguel Albuquerque, à data presidente da Câmara do Funchal, hoje do Governo Regional da Madeira.
Depois, logo em abril de 2011, o Ministério Público deu por arquivado o inquérito criminal entretanto aberto, não dando como provada qualquer “violação das regras urbanísticas e de construção que tenham agravado o risco e conduzido à existência de mais vítimas”. “Todas as mortes são de causa acidental, não podendo estabelecer-se qualquer nexo de causalidade entre comportamento humano, culposo ou doloso, e os resultados da morte verificados“, foi a conclusão do relatório, assinado pelo então procurador da República coordenador na Madeira, Gonçalves Pereira.
Entrevistado recentemente sobre a catástrofe, para o projeto Sons da História, da Fundação Francisco Manuel dos Santos e da TSF, Alberto João Jardim, histórico líder, presidente do Governo Regional da Madeira entre 1978 e 2015, recusou quaisquer responsabilidades. “Não me podiam deitar culpas porque precisamente as obras que resistiram foram as do meu tempo, as que não resistiram é que foram as anteriores a mim. Sabe que nestas coisas não gosto de cultivar a tragédia, o problema era resolver aquilo imediatamente e começar a trabalhar imediatamente”, encerrou o assunto, preferindo realçar a celeridade da recuperação, mesmo a tempo da Festa das Flores, em abril, lamentar os mortos e recordar o embate que então teve com José Sócrates.
Na altura primeiro-ministro, José Sócrates aterrou no Funchal logo na noite do aluvião, horas depois de o Governo Regional ter ordenado a todos os motoristas do Estado que se apresentassem ao trabalho e de ter feito uma requisição civil às empresas de construção, para proceder à limpeza e recuperação da ilha.
Foi recebido com cortesia, assegura Alberto João Jardim que, apesar de há anos lhe ter declarado guerra, achou que a gravidade da situação justificava um período de tréguas. “Eu na altura não falava com o engenheiro Sócrates, tinha havido conflitos graves, tínhamos feito eleições antecipadas em 2007, nessa altura o engenheiro Sócrates foi lá e não era altura de continuar com chatices. Quem conhece a Madeira sabe que há uma estrada marginal chamada Avenida Sá Carneiro e está lá um busto do doutor Francisco Sá Carneiro, que estava coberto de lama até ao pescoço. Estavam já máquinas, geradores com luz artificial, para se poder iluminar as zonas onde as máquinas já estavam a trabalhar e a abrir e a limpar, e eu lembro-me de o engenheiro Sócrates me ter feito este comentário: ‘Olha, já estão trabalhando!’. E eu disse-lhe, ‘Sim, tinha de ser, isto tem de se andar rapidamente’. E então ele disse-me, com certo espírito de humor, ‘Olhe, se isto fosse no continente eles estavam ainda a discutir e a chorar e a discutir ainda de quem era a competência’. E eu olhei para ele e pensei, ‘Deixa estar que agora vou-te dar a piada’: ‘Sabe, mas aqui há quem mande!’.”
Para fazer face aos prejuízos, o Estado português anunciou logo em 2010 o envio de 740 milhões de euros para a região — o Fundo de Solidariedade da União Europeia contribuiu com 33 milhões, o Governo Regional ficou com um ónus de 309.
Hoje, dez anos depois da catástrofe e cinco depois de Jardim ter abandonado a presidência do Governo Regional, ainda há quem espere por cirurgias, como Dúlio Freitas, e seis famílias estão ainda por realojar, mas no Funchal a maior marca da catástrofe é mesmo a nova “Praça do Povo”, inaugurada em novembro de 2014, junto à Avenida do Mar, e construída com os cerca de 100 mil metros cúbicos de detritos e entulho ali acumulados no 20 de fevereiro.
O projeto, inicialmente chumbado pela Câmara do Funchal, custou 81 milhões de euros e foi muito contestado por partidos e cordões humanos de ambientalistas, que o consideraram uma obra “megalómana” e um “desperdício de dinheiro”. No fim, foi a voz de Alberto João Jardim quem mandou mais: “Grite quem gritar é para avançar”.